O Estado de São Paulo (2020-03-25)

(Antfer) #1

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A10 Metrópole QUARTA-FEIRA, 25 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


FERNANDO


REINACH


N


as próximas semanas vamos
ser inundados de noticias so-
bre a falta de respiradores pa-
ra tratar os casos graves de coronaví-
rus em São Paulo. Esse é um proble-
ma que todos os países estão enfren-
tando e conosco não vai ser diferen-
te. O problema é que o governo nem
sequer sabe quantos respiradores
vai precisar. Assim como no caso
dos testes diagnósticos, os gover-
nos estão sendo muito lentos, esta-
mos condenados a responder aos fa-
tos em vez de nos anteciparmos.
Vou tentar explicar o problema dos
respiradores e como é possível cal-
cular quantos vão faltar.
Quem já foi operado sob aneste-
sia geral usou um respirador. Duran-
te a anestesia ficamos incapazes de
aspirar o ar para o interior de nossos
pulmões. Por isso os médicos intro-
duzem um pequeno cano em nossa
boca que chega até a traqueia. Esse
duto leva o ar aos nossos pulmões. É
desconfortável, mas normalmente
já estamos dormindo quando isso é
feito e não lembramos depois. Esse
tubo está ligado ao respirador, que
não passa de uma bomba de encher
pneu de bicicleta altamente sofisti-
cada. Ele bombeia uma quantidade
predeterminada de ar para o inte-
rior de nossos pulmões com um flu-
xo e uma pressão que pode ser regu-

lada pelo médico. O ar bombeado po-
de ser enriquecido com oxigênio.
Após o ar ter sido bombeado, uma
válvula se abre e o ar é expelido por
nossa caixa torácica que funciona co-
mo um balão que se esvazia quando
abrimos o bocal. O princípio é simples,
mas esses equipamentos são muito so-
fisticados e precisam ser operados por
pessoas muito bem treinadas. Toda sa-
la cirúrgica tem um equipamento des-
se e todos os hospitais têm vários des-
ses equipamentos para serem usados
em pacientes com os mais diferentes
problemas respiratórios, normalmen-
te em leitos de UTI. Tratar casos gra-
ves de pneumonia é um dos usos desse
equipamento e a covid-19 é uma forte
pneumonia viral.
Durante a pandemia de coronavírus,
é sempre bom lembrar, a maioria dos
contaminados com certeza não vai
nem sequer passar perto de um desses
equipamentos, pois 80% dos casos
não necessitam ser tratados em hospi-
tais e se recuperam sozinhos em casa.
Dos 20% que precisam ser internados,
muitos não precisam de auxílio respira-
tório, outros precisam somente de um
pouco de oxigênio que pode ser libera-
do logo na entrada do nariz, outros tan-
tos podem ser tratados com aparelhos
que auxiliam a respiração sem que seja
necessário inserir um tubo na traqueia
(uma máquina parecida com as usadas

em casa por pessoas que têm dispneia
do sono). Mas, infelizmente, um pe-
queno número de pacientes, algo co-
mo 5% ou 6% de todos os infectados
pelo vírus, ficam com seu pulmão tão
alterado que para conseguir respirar
(o que significa manter níveis adequa-
dos de oxigênio no sangue) precisam
ser colocados nesses respiradores até
se recuperarem.
Apesar de esses aparelhos existirem
em todos os hospitais, e uma fração
muito grandes dos infectados não ne-
cessitar desses aparelhos (por volta de
95%, insisto), quando o número de in-
fectados é muito grande, como ocor-
reu na China, e está acontecendo na
Itália e na Espanha, e muito provavel-
mente vai acontecer em São Paulo, o
número desses aparelhos pode não ser

suficiente para tratar todos os pacien-
tes. Esse é um dos fatores que leva ao
colapso dos hospitais no pico da epide-
mia. Portanto, é preciso calcular quan-
tos vão faltar em cada hospital ou re-
gião do País e se preparar comprando
um número maior. Mas isso leva tem-
po. Se a produção de luvas e máscaras
pode ser aumentada rapidamente,
com respiradores a história é diferen-
te. Infelizmente, se houver dois pacien-
tes que precisam de respiradores e so-
mente existir um respirador, um dos
pacientes vai morrer.
O problema que vivemos hoje no
Brasil é que o governo ou não tem uma
estimativa de quantos respiradores
vão ser necessários em cada hospital
ou região ou se recusa a mostrar esse

número para não deixar a população
preocupada. Mas, sem esse número,
como podemos ajudar a resolver o pro-
blema? Eu não vou fazer aqui as con-
tas, mas posso descrever como essa
conta pode ser feita e tem sido feita em
todos os países desenvolvidos.
O primeiro passo é construir possí-
veis cenários para o pico da pandemia
em cada região. Ou seja, precisamos de
um gráfico onde o número de casos
detectados fica no eixo vertical e a data
no eixo horizontal. A maioria dos paí-
ses trabalha com três cenários, um oti-
mista, com número menor de casos,
um médio e um pessimista. Imagine o
caso de São Paulo com 11 milhões de
habitantes. Um possível cenário é que
1% da população seja contaminada ou
seja 110 mil pessoas. Dessas, imagine
que 5% precise de respiradores, ou seja
5,5 mil pessoas. Mas essas pessoas não
vão precisar ao mesmo tempo. No ini-
cio da curva poucos pacientes preci-
sam de respiradores, no pico da curva
muitos vão precisar e no fim da curva
esse número cai. Parece simples, mas
tem um complicador. Cada pessoa fica
no aparelho entre uma e três semanas
até se recuperar. Ou seja, os respirado-
res são tomados logo quando o núme-
ro de casos está aumentado e ficam
ocupados por semanas por essa pes-
soa. Assim, nesse cenário hipotético,
precisaríamos de menos de 5,5 mil res-
piradores, mas o número exato tem de
ser calculado cuidadosamente a partir
dessas curvas (os chamados cenários).
Aí essa conta tem de ser repetida para
o caso de 10% ou 15% da população ser
infectada, ou outro cenário que o go-
verno acreditar que pode ocorrer. Fei-
tos os cenários e calculado o número
de respiradores necessários, o gover-
no tem de descobrir quantos respirado-

res já existem (aparentemente já há
esse dado no banco de dados do Sis-
tema Único de Saúde). Com base
nesses dados é fácil saber quantos
respiradores precisam ser compra-
dos ou colocados em funcionamen-
to para atender à demanda. E, final-
mente, isso tudo tem de ser feito
para cada região do Estado de São
Paulo e do Brasil.
Nenhum país do mundo parece
ter o número suficiente de respira-
dores, se algo como 5% da popula-
ção for infectada. Mas descobrir e
divulgar quantos respiradores preci-
samos é tarefa urgente do governo.
Só com esse número a sociedade po-
de ajudar o governo a se organizar.
Nesta semana, grandes doadores se
cotizaram para comprar respirado-
res, mas ninguém ainda sabe se o
número comprado é suficiente ou
se está longe de resolver o proble-
ma.
Agora a boa notícia. O número de
respiradores que precisaremos de-
pende do número total de pacientes
e como esses casos vão se distribuir
ao longo do tempo. Se todos aconte-
cerem ao longo de um mês, vai ser o
caos. Se eles forem distribuídos ao
longo de alguns meses, o número de
respiradores necessários cai muito.
E adivinhe de quem depende o nú-
mero de casos que teremos? Em par-
te, de nós mesmos. Da nossa capaci-
dade de nos isolarmos e de lavar-
mos as mãos. Ou seja, cada um de
nós tem o poder e a responsabilida-
de de reduzir o número de pessoas
que vão morrer por falta de respira-
dores.

]
É BIÓLOGO

Vinícius Valfré / BRASÍLIA


Dez dias após o governo edi-
tar uma medida provisória
que destinou R$ 5,1 bilhões
para ações de enfrentamento
ao coronavírus, R$ 1,8 bilhão
já está comprometido para
despesas necessárias ao com-
bate da covid-19. No jargão or-
çamentário, significa dizer
que 35% do montante autori-
zado para esse fim já tem em-
penho definido.

As despesas já liquidadas, ou
seja, aquelas em que o poder pú-
blico já reconhece o direito de
receber dos fornecedores, so-
mam R$ 424,8 milhões. Desse
montante, as que já foram efeti-
vamente pagas estão no mesmo
patamar, R$ 424,7 milhões. Os
dados foram levantados a pedi-
do do Estado pela ONG Contas
Abertas, que alerta para o ritmo
de pagamentos. “Pelo que vi-
mos na Itália, é importante que
a população tenha conhecimen-
to disso ( o ritmo das despesas ). O
governo está liberado a não lici-
tar. Então, agora é uma questão
de planejar e gastar bem para
salvar vidas”, comentou o secre-
tário-geral da ONG, Gil Castel-
lo Branco.
As verbas empenhadas só al-
cançaram o nível atual na segun-
da-feira. Até a última sexta,
eram R$ 585,5 milhões empe-
nhados, 11% do total. Com o au-
mento no número casos, houve
um salto triplo na parcela de re-
cursos reservados. Eles ser-
vem, por exemplo, para compra
de medicamentos, equipamen-
to de segurança para profissio-


nais e respiradores.
Os R$ 5,1 bilhões entraram co-
mo crédito extraordinário no
dia 14, fruto de acordo entre o
Congresso e o presidente Jair
Bolsonaro. Para o levantamen-
to, foram consideradas as des-
pesas marcadas como “enfren-
tamento da emergência de saú-
de pública de importância inter-
nacional decorrente do corona-
vírus”. Os dados são do Sistema

Integrado de Administração Fi-
nanceira (Siafi), onde é feita a
contabilidade do governo.
Técnicos do ministério ouvi-
dos pelo Estad o garantem que
não existe problema no ritmo
de contratações e de pagamen-
tos. Eles dizem que boa parte
dos R$ 5,1 bilhões será usada ao
longo do tempo para, por exem-
plo, pagamento de salários de
médicos, compra de leitos e cus-

tos de internação de pacientes
com a covid-19. A prioridade
era abastecer as regiões com os
recursos. Portanto, conside-
ram natural um certo represa-
mento dos valores agora.

Frentes. A quantidade de di-
nheiro para atacar diretamente
as consequências do coronaví-
rus na saúde da população des-
toa do tamanho das cifras que

têm sido anunciadas oficial-
mente pelo Executivo federal
para encarar a crise porque são
frentes distintas de atuação. Na
segunda-feira, o presidente Jair
Bolsonaro disse que o governo
vai implementar um plano de
R$ 88,2 bilhões para fortalecer
estados e municípios.
Esse anúncio mais recente,
porém, inclui estratégias para
estímulo da economia. Dentro
do pacote, por exemplo, é consi-
derada a suspensão de R$ 12,
bilhões de dívidas dos Estados
com a União e também R$ 40
bilhões em operações com faci-
litação de crédito. Para efeito
de comparação, os gastos com a
Copa do Mundo de 2014 fica-
ram na casa dos R$ 25 bilhões.
Hoje, há apenas os R$ 5,1 bi-
lhões autorizados no orçamen-
to para ações de contenção da
doença – com rubricas nos Mi-
nistérios da Saúde, da Educa-
ção e da Defesa, concentradas
no primeiro.
A verba é constituída princi-
palmente de recursos ordiná-
rios, aqueles que podem ser re-
manejados no orçamento, e ain-
da pode ser incrementada pelo
governo de Jair Bolsonaro. O
Ministério da Saúde não infor-
mou à reportagem o valor total
que planeja autorizar para
ações diretas de combate ao ví-
rus. A maior parcela de paga-
mentos consolidados foi feita
aos Estados. Foram R$ 424,1 mi-
lhões, segundo os dados mais
recentes. Conforme o Ministé-
rio da Saúde, os repasses aos Es-
tados consideram a estimativa
de R$ 2 por habitante.

Julia Lindner / BRASÍLIA
Paulo Favero


O Itamaraty estima que pelo
menos 12 mil brasileiros já en-
frentaram algum tipo de dificul-
dade para retornar ao País nos
últimos dias, em razão do fecha-


mento de fronteiras como medi-
da de contenção ao avanço do
novo coronavírus. Desses, mais
de 5 mil já conseguiram embar-
car. O restante, quase 7 mil, ain-
da aguarda repatriação.
“Os esforços do Itamaraty,
com o apoio da Anac ( Agência Na-
cional de Aviação Civil ) e do Minis-
tério do Turismo, possibilita-
ram o retorno, até ontem, de
mais de 5.200 brasileiros. A situa-
ção continua fluida e os núme-
ros de brasileiros são constante-
mente revistos. Ao meio-dia de
hoje ( ontem ), permanecem

6.919 brasileiros a repatriar”, diz
nota do Itamaraty. “Continua-
mos a trabalhar para garantir o
retorno de todos os brasileiros
ao País, no prazo mais curto pos-
sível.”
O presidente Jair Bolsonaro
escreveu ontem em sua conta
pessoal no Twitter que duas ae-
ronaves da FAB decolaram do
Rio de Janeiro e do Pará “rumo
a Cuzco (Peru) para resgatar
brasileiros que se encontram
isolados naquela cidade” em ra-
zão da pandemia.
O chanceler Ernesto Araújo

afirmou ontem que tem se dedi-
cado ao trabalho de repatriação
dos brasileiros retidos no exte-
rior. “O MRE está embarcado
nessa missão: repatriar os brasi-
leiros para a segurança de seus
lares e contribuir no esforço in-
ternacional de sustentação eco-
nômica – no G20, em foros de
chanceleres e diálogos bilate-
rais”, disse.
No domingo, Araújo disse
que “a repatriação de brasilei-
ros avança”. “Aos que ainda não
conseguiram voltar: estamos
trabalhando por todos vocês”,

declarou. Nos últimos dias, bra-
sileiros conseguiram retornar
ao País de locais como Portugal,
Peru e Marrocos.
Para tentar auxiliar os brasi-
leiros retidos no exterior, a
Agência Nacional de Aviação Ci-
vil (Anac) elaborou um cadas-
tro virtual no fim de semana pa-
ra organizar as demandas de
quem possui passagens compra-
das, mas não conseguiu embar-
car. A ideia é tentar encaixes ou
viabilizar novos voos. De acor-
do com a Anac, foram realiza-
dos quase 11 mil cadastros entre

domingo e segunda. “As autori-
dades brasileiras seguirão com
os esforços para ajudar a viabili-
zar os brasileiros que tiveram
seus voos cancelados em países
que estão com restrições para
deslocamento aéreo.”
Dos cerca de 1.300 brasileiros
que se cadastraram na Embaixa-
da do Brasil em Lima, Peru, 639
já retornaram ao País. O grupo
mais recente chegou a São Pau-
lo no sábado à noite, após uma
saga para conseguir sair de Cuz-
co. Mas muita gente ainda espe-
ra o “resgate” após o presidente
Martín Vizcarra decretar, no
dia 15, o fechamento das frontei-
ras do Peru para tentar conter o
avanço da pandemia.

E-MAIL: [email protected]

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


l Planejamento

Levantamento feito a pedido do ‘Estado’ revela que, de R$ 5,1 bilhões emergenciais liberados no dia 14, 8,3% tiveram gasto concluído


Quase 7 mil brasileiros no exterior esperam repatriação


Suspeita de doença faz enterro ser feito às pressas em SP. Pág. A11 }


DIDA SAMPAIO/ESTADÃO

Em dez dias, governo empenha R$ 1,8 bi


“ é importante que a
população tenha
conhecimento disso. O
governo está liberado a não
licitar. Então, agora é uma
questão de planejar e gastar
bem para salvar vidas.”
Gil Castelo Branco
SECRETÁRIO-GERAL - CONTAS ABERTAS

Recursos. Ministério da Saúde, comandado por Mandetta, não informou quanto deve autorizar para ações de combate

Dois aviões decolaram


ontem com destino ao


Peru para resgatar quem


está com dificuldade


após país fechar fronteira


Vão faltar respiradores


O problema é que o governo
nem sequer sabe quantos
vai precisar

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