O Estado de São Paulo (2020-03-25)

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A8 Internacional QUARTA-FEIRA, 25 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Julie Turkewitz
THE NEW YORK TIMES
MARACAIBO, VENEZUELA


Em seus últimos minutos jun-
tos, Jean Carlos, de 8 anos,
apertou forte a mão de sua
mãe e prometeu “respirar fun-
do” para não chorar. A irmã de-
le, Crisol, de 10 anos, escon-
deu-se na cozinha, furiosa. O ir-
mão, Cristian, de 12 anos, le-
vou uma mala azul. No portão
da casa, Aura Fernández, de
38 anos, mãe solteira, segura-
va as lágrimas. Seu ônibus se
aproximou. Ela beijou os fi-
lhos, embarcou e desapare-
ceu. “Amo vocês”, disse Aura,
antes de partir. “Estudem
bastante.”

Sete anos após o início do co-
lapso econômico, a crise migra-
tória na Venezuela se transfor-
mou em uma das maiores do
mundo. Milhões já deixaram o
país. Até o fim de 2020, estima-
se que 6,5 milhões de pessoas
terão fugido, de acordo com a
agência de refugiados da ONU –
número raramente visto em
tempos de paz.
Há nesses dados, porém, um
fenômeno oculto. Determina-
dos a encontrar trabalho, comi-
da e remédio, pais e mães estão
deixando para trás. Hoje, são
centenas de milhares de crian-
ças que estão sob os cuidados


de avós, tios, e até irmãos que
mal saíram da puberdade. Mui-
tos temem submeter os filhos
ao difícil e às vezes muito peri-
goso processo de imigração. Ou-
tros simplesmente não podem
arcar com o custo de levá-los.
O êxodo é tão grande que está
mudando o próprio conceito de
infância na Venezuela, com
crianças em idade escolar pro-
curando trabalho nas ruas – e
deixando muitas expostas aos
abusos de figuras que preen-
chem o vácuo deixado pelo co-
lapso do governo venezuelano,
como bandos armados e explo-

radores sexuais.
Segundo uma avaliação reali-
zada pela organização de ajuda
humanitária Cecodap, com se-
de em Caracas, e pelo instituto
de pesquisa Datanálisis, os re-

fugiados deixaram para trás
quase 1 milhão de crianças.
“Crescemos rápido”, disse a so-
brinha de Aura, Silvany, de 9
anos, cabelos longos e voz rou-
ca. A mãe partiu para trabalhar
na Colômbia em outubro e nun-
ca mais voltou.
Desde então, Silvany e os pri-
mos ficaram com os avós, que
já são idosos. A menina assu-
miu muitas das responsabilida-
des, incluindo o irmão mais no-
vo, Samuel, de 1 ano, dando co-
mida e ninando o bebê à noite.
“Sou irmã dele. Mas, na verda-
de, sou a babá.”

Em situações raras, crianças
foram passadas de avós para
primos e vizinhos, após a fuga
ou desaparecimento dos res-
ponsáveis, até que as crianças
comecem a se virar sozinhas.
“É um fenômeno que vai mu-
dar o aspecto da nossa socieda-
de”, afirmou Abel Saraiba, psi-
cólogo da Cecodap, que atende
crianças venezuelanas abando-
nadas.
De acordo com ele, as separa-
ções forçadas ameaçam enfra-
quecer a geração de quem se es-
pera, um dia, a reconstrução de
uma Venezuela arrasada.

NOVA DÉLHI


O primeiro-ministro da Ín-
dia, Narendra Modi, anun-
ciou ontem o confinamento
total do país de 1,3 bilhão de
habitantes durante três sema-
nas para conter a pandemia
do novo coronavírus. “A par-


tir de meia-noite, todo o país
está confinado. Para salvar a
Índia, para salvar cada cida-
dão, vocês e suas famílias”,
afirmou Modi, em discurso
transmitido pela TV. “Se es-
tes 21 dias não forem respeita-
dos, o país e suas famílias vol-
tarão 21 anos no tempo.”

O confinamento na Índia au-
menta para mais de 2,6 bilhões
o número de pessoas em todo o
mundo que terão de se isolar
em casa para combater o covid-
19, segundo contagem feita on-
tem pela agência France Presse.
O primeiro-ministro também
pediu aos indianos que respei-

tem o distanciamento social e
fiquem em casa. “Não há ne-
nhum outro meio de escapar
do coronavírus”, declarou.
“Lembrem que até mesmo
uma única pessoa fora de casa
pode trazer uma grave doença
para sua casa.”
A decisão de Modi foi tomada
em um momento de preocupa-
ção com a propagação do coro-
navírus em comunidades empo-
brecidas e com a falta de capaci-
dade dos sistemas públicos de
saúde para tratar de um grande
número de infectados.
Após o pronunciamento, a
polícia saiu às ruas e fez inter-
dições em várias regiões do
país. Em alguns casos, houve
toque de recolher e as autori-
dades alertaram que o corona-
vírus agora está se propagan-
do das grandes metrópoles,
onde começou, para cidades
pequenas. O país cortou todas
as ligações aéreas internacio-
nais e domésticas.
Pesquisadores de saúde disse-
ram que mais de um milhão de

pessoas na Índia poderão ser in-
fectadas com o coronavírus até
meados de maio. Uma autorida-
de de saúde do Estado de Maha-
rashtra disse que novos casos co-
meçam a aparecer em cidades
pequenas, depois de uma primei-
ra onda emergir em grandes me-
trópoles como Mumbai. “Essa
tendência é preocupante, pois
as áreas rurais têm uma infraes-
trutura limitada para lidar com
o surto”, disse a autoridade esta-
dual de saúde, que não quis se
identificar porque não estava au-
torizada a falar com jornalistas.
Até o momento, o governo da
Índia registrou pouco mais de

500 casos da doença e 10 mor-
tes. Especialistas apontam que o
número oficial, provavelmente,
está subestimado, em razão do
reduzido número de testes que
foram realizados no segundo
país mais populoso do mundo.
A Índia foi se isolando pro-
gressivamente dos vizinho nas
últimas semanas e instalou bar-
reiras entre seus diferentes Es-
tados para evitar que a epide-
mia se propague. A gigantesca
rede ferroviária indiana, coluna
vertebral do sistema de trans-
porte público do país, deixou de
funcionar, assim como os ôni-
bus inter-regionais.
Os voos domésticos seriam
suspensos a partir da meia-noite
de ontem e os internacionais es-
tão proibidos de aterrissar na Ín-
dia até domingo, uma medida
que, provavelmente, será prorro-
gada. “Essas medidas podem aju-
dar a desacelerar a transmissão
do vírus”, afirmou o médico Ro-
derico Ofrin, responsável regio-
nal da Organização Mundial da
Saúde (OMS). / REUTERS, AP e AFP

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


Sanções devem ser


suspensas, pede


comissária da ONU


l Alerta

Crise econômica deixa 1 milhão de órfãos na Venezuela


l Alerta

lA alta comissária das Nações
Unidas para os direitos humanos,
Michelle Bachelet, pediu ontem
que as sanções econômicas im-
postas a países como Irã, Vene-
zuela, Cuba e Coreia do Norte
sejam relaxadas ou suspensas
“neste período crucial” de pande-
mia de coronavírus.
“É necessário aplicar revoga-
ções amplas e pragmáticas por
razões humanitárias e permitir
autorizações rápidas e flexíveis
para obter bens e equipamentos
médicos essenciais”, afirmou
Bachelet. “Tanto por razões de
saúde pública quanto para apoiar
os direitos e as vidas de milhões
de pessoas nesses países, as
sanções precisam ser relaxadas
ou suspensas. Neste contexto de
pandemia, dificultar os esforços
médicos aumenta os riscos para
todos nós.”
Bachelet insistiu especialmen-
te na situação do Irã, um dos paí-
ses mais afetados pelo coronaví-
rus – juntamente com Itália, Chi-
na e Espanha. De acordo com ela,
o impacto das sanções tem im-
pacto grande sobre os iranianos,
que não podem obter medicamen-
tos e equipamentos médicos.
Segundo Bachelet, 50 profis-
sionais da saúde iranianos morre-
ram desde que os primeiros ca-
sos foram detectados, há cinco
semanas. Bachelet disse que, em
Cuba, Coreia do Norte, Venezuela
e Zimbábue, as sanções podem
dificultar o trabalho médico e cau-
sar ainda mais mortes. / AFP

MERIDITH KOHUT/THE NEW YORK TIMES

Saudade. Filhos de Aura Fernández, que foi trabalhar na Colômbia, dividem quarto em Maracaibo e aguardam volta da mãe

MERIDITH KOHUT/THE NEW YORK TIMES

“As separações ameaçam
enfraquecer a geração de
quem se espera, um dia, a
reconstrução de uma
Venezuela arrasada”
Abel Saraiva
PSICÓLOGO

Abandono. Crianças se preparam para dormir na Casa Hogar Carmela Valera, na cidade de Maracaibo: muitas famílias não resistiram a sete anos de crise econômica na Venezuela


Pais e mães partem


atrás de trabalhado e


deixam com parentes


filhos que muitas vezes
acabam sozinhos


Governo da Índia


coloca 1,3 bilhão


em quarentena


“Lembrem que até
mesmo uma única
pessoa fora de
casa pode trazer
uma grave doença
para sua casa”
Narendra Modi
PRIMEIRO-MINISTRO DA ÍNDIA

Primeiro-ministro indiano afirma que medida é ‘para salvar’ o


país da pandemia de coronavírus e terá duração de três semanas


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