O Estado de São Paulo (2020-05-21)

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O ESTADO DE S. PAULO QUINTA-FEIRA, 21 DE MAIO DE 2020 Metrópole A


Mateus Vargas / BRASÍLIA


Sem passar pelas etapas ne-
cessárias, o Ministério da Saú-
de mudou ontem a orienta-
ção sobre o uso da cloroqui-
na, estendendo a possibilida-
de de médicos prescreverem
a substância a todos os pacien-
tes com covid-19. Em vez de
um protocolo, como vinha de-
fendendo o presidente Jair
Bolsonaro, a pasta divulgou
apenas um documento, sem
assinatura e fora dos padrões,
em que recomenda a adminis-
tração da droga desde os pri-
meiros sinais da doença. Na
prática, Bolsonaro perdeu
dois ministros que se recusa-
ram a assinar a medida e, mes-
mo assim, continuou sem con-
seguir exigir de Estados, mu-
nicípios e da rede privada mu-
danças no atendimento.

O documento divulgado on-
tem, porém, foi a alternativa en-
contrada pelo ministro interi-
no da Saúde, general Eduardo
Pazuello, diante das dificulda-
des de se criar um protocolo
propriamente dito – este sim
com poder de ditar regras de
atendimento no Sistema Único
de Saúde (SUS). Para isso, seria
necessária a aprovação de um


Protocolo Clínico de Diretriz
Terapêutica (PCDT), medida
que passa por um rito próprio e
muitas vezes lento no governo.
Um dos pilares para elaborar
o protocolo é a comprovação
científica da eficácia da droga –
o que não existe. O órgão res-
ponsável por avaliar se um pro-
duto será usado na rede pública
é a Comissão Nacional de Incor-
poração de Tecnologias no SUS
(Conitec), colegiado formado
por representantes da indús-
tria e diversos setores.
“O protocolo precisa ser algo
cartorial, com obrigação de
‘cumpra-se’. O que estamos fa-
zendo é orientação, a partir da
liberação do Conselho Federal
de Medicina (CFM) de que
médicos brasileiros possam ter
livre-arbítrio. Queremos garan-
tir que o tratamento de tantos
brasileiros não seja retardado”,
afirmou ontem a secretária de
Gestão do Trabalho e da Educa-
ção, Mayra Pinheiro.
Para gestores do SUS, ao di-
vulgar apenas uma orientação
de uso do produto, o ministério
contornou a dificuldade de
criar um protocolo do SUS so-
bre um medicamento sem bene-
fício comprovado contra a co-
vid-19 – e ainda agradou ao pre-

sidente e à sua militância.
O uso em larga escala da cloro-
quina para combater o corona-
vírus se tornou uma das princi-
pais bandeiras de Bolsonaro du-
rante a pandemia, mesmo sem
respaldo da comunidade cien-
tífica sobre a eficácia ( mais infor-
mações nesta página ). Nas redes
sociais, aliados do governo des-
tacaram a “coragem” de Bolso-
naro em “liberar” a droga.
Médicos já vinham receitan-
do a cloroquina nas redes priva-
da e pública de forma “off la-
bel”, ou seja, fora das recomen-
dações da bula. Para dar respal-
do a esta situação, mas sem se-
guir recomendações científi-
cas, o CFM decidiu, no fim de
abril, livrar de infração ética o

profissional que prescrever a
cloroquina contra a covid-19.
O médico sanitarista Gonza-
lo Vecina, colunista do Esta-
dão e fundador da Agência Na-
cional de Vigilância Sanitária
(Anvisa), afirmou que a nova
orientação é apenas política.
“O ministério fez para deixar o
presidente (Bolsonaro) satisfei-
to. Vai ser uma arma de pressão
aos fracos, para quem não acre-
dita na ciência”, disse. “É uma
questão de fé. Quando não tem
o que fazer, as pessoas querem
qualquer coisa. Esse negócio,
além de não fazer bem, pode fa-
zer mal”, completou Vecina.
Para o advogado sanitarista
Tiago Farina Matos, a orienta-
ção do ministério é “frágil”, pois

não passou pelo rito correto.
“Não seguindo este caminho, vo-
cê tem uma deliberação com ví-
cio de origem e falta de credibili-
dade. O fluxo de análise na Coni-

tec poderia ser acelerado, mas
não há justificativa para não usar
este processo”, disse.
Especialistas e gestores do
SUS ouvidos pela reportagem te-
mem que pacientes passem a exi-
gir a prescrição após a orienta-
ção da pasta. Secretários esta-
duais alertam para a possibilida-
de de o presidente usar a droga
como justificativa para reduzir o
distanciamento social.
O secretário de Saúde do Ma-
ranhão, Carlos Lula, disse que o
documento divulgado nesta
quarta-feira pela pasta não mu-
da a rotina no Estado. “O PCDT
seria mais forte. A gente passa a
ter consequência, inclusive, ci-
vil. Pode haver obrigação de se
adequar”, disse.

Especialistas temem


pressão sobre médicos


Plano distribui


remédio em


Fortaleza


Felipe Resk


Ao menos oito governos esta-
duais já sinalizaram que não
vão aderir ao uso generalizado
de cloroquina – entre eles, São
Paulo, Bahia e Rio Grande do
Sul. Em outros sete, as adminis-
trações afirmam que a aplica-
ção ou não da substância ainda
está sob estudo. As demais uni-
dades federativas não deram re-
torno até as 21h30.
Considerado epicentro do co-
ronavírus no País, São Paulo de-
ve manter a administração de
cloroquina nos hospitais como
era feita até então, segundo afir-
mou o governador João Doria
(PSDB). “Nós não faremos dis-
tribuição nem aplicação genera-
lizada da cloroquina, porque a
ciência não recomenda”, disse.
“A ciência não orienta este pro-
cedimento e em São Paulo nós


seguimos o que diz a ciência.”
No Rio Grande do Sul, o go-
vernador Eduardo Leite
(PSDB) declarou que “quem
tem de tomar a decisão é o pro-
fissional de saúde”. “Não há evi-
dência suficiente para que a clo-
roquina tenha administração ir-
restrita, pelo contrário: são fei-
tos muitos alertas sobre possí-
veis efeitos colaterais graves.”
O governador da Bahia, Rui
Costa (PT), também se opôs à
nova recomendação do Ministé-
rio da Saúde e criticou a politiza-
ção do remédio. “Não será ado-
tado. Os médicos com seus pa-
cientes e familiares definem o
protocolo de atendimento”, dis-
se ao Estadão. “Na Bahia recei-
ta médica não é definida por
ideologia ou pelos políticos.”
Por sua vez, o governo Flávio
Dino (PCdoB), do Maranhão,
disse que “não há certeza cien-
tífica em nível internacional ou
nacional” sobre o assunto. Em
Pernambuco, o governo Paulo
Câmara (PSB) afirmou que “re-
cebe com preocupação as novas
orientações do Ministério da
Saúde” e destaca não haver nú-
mero suficiente de comprimi-

dos, caso se queiram tratar to-
dos os casos leves.
“Não há nenhuma modifica-
ção”, afirmou por sua vez o se-
cretário da Saúde da Paraíba,
Geraldo Medeiros. Segundo
afirma, o corpo técnico da área
tem estudado “inúmeros traba-
lhos” e não há “evidências cien-
tíficas comprovadas” dos bene-
fícios da cloroquina. “É funda-
mental que ( o uso ) seja sob pres-
crição médica, porque o médi-
co se responsabiliza por essa
prescrição”, disse. No Norte, o
governo Helder Barbalho
(MDB) também diz que não vai
alterar a administração da cloro-

quina nas unidades do Pará.
No Mato Grosso do Sul, o se-
cretário de Saúde, Geraldo Re-
sende, disse que o medicamen-
to adquirido pelo governo foi
destinado para trabalho científi-
co em duas unidades hospitala-
res. “O uso da cloroquina é re-
servado à decisão do médico
em relação à aplicação.”
Já os governos de Minas, Para-
ná, Santa Catarina, Mato Gros-
so, Acre, Piauí e Rio Grande do
Norte afirmaram ao Estadão
que o novo protocolo está sen-
do avaliado por comitês científi-
cos locais ou pelas Secretarias
de Saúde. O governo do Distri-
to Federal não se pronunciou.

No Sistem Único. O secretário
do Maranhão, Carlos Lula, afir-
ma que há receio sobre a orienta-
ção estimular pressão da popula-
ção sobre gestores do Sistema
Único de Saúde (SUS) e médi-
cos. “Indiretamente já tem acon-
tecido, mas é um erro. Debate
equivocado. O presidente ( Bolso-
naro ) acaba trazendo isso ao cen-
tro do debate”, disse. “A gente
sabe que não há medicação
100% eficaz. A maioria dos pa-
cientes melhora sem tomar na-
da, pode tomar cloroquina ou tu-
baína, vai dar na mesma. É um
debate equivocado”, disse o se-
cretário, em uma alusão à ironia
feita por Bolsonaro, em live na
terça. / COLABOROU MATEUS VARGAS

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


Pablo Pereira
Roberta Jansen/ RIO

Para especialistas, recomenda-
ções de uso da droga devem
exercer pressão sobre médicos
para a prescrição. “Não só pela
recomendação em si, do gover-
no, mas, sobretudo, pela pres-
são do público leigo, pacientes
e familiares”, diz Jorge Salluh,
da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ).
Para Salluh, deve haver tam-
bém um outro tipo de pressão,
no futuro. “Qualquer um que
prescrever essa droga hoje, no
futuro pode ser processado por
má prática, no meu entender”,
afirmou. “Porque prescreveu
droga sobre a qual não há benefí-
cios comprovados e há poten-
cial de risco ligado à dosagem.”
Advogados ouvidos pelo Es-
tadão avaliam que a iniciativa é
simbólica e política, sem obri-

gar prescrição. Para Davi Tange-
rino, professor de Direito Penal
da Fundação Getúlio Vargas
(FGV-SP), a medida não é passí-
vel de processo criminal. “O
que faz é uma autorização”, ex-
plicou. Segundo o jurista, não
se trata de uma norma que obri-
gue os médicos a usarem a dro-
ga nos casos leves da doença. A
adoção do tratamento conti-
nua a critério dos especialistas.
“A meu ver, não cabe responsa-
bilizar criminalmente ( o minis-
tério )”, disse.
Mas o professor explicou que
Ministério Público ou Defenso-
rias Públicas podem, isso sim,
apelar para o aspecto cível da
questão, na medida em que essa
norma pode levar as estruturas
públicas, do SUS, por exemplo,
a sofrerem danos por uso de um
medicamento sem a eficácia
comprovada contra a doença.
“E esse é um outro aspecto”,
alertou o jurista.
O advogado Daniel Dourado,
que também é médico, vê um
“protocolo informal”, ou seja,
uma orientação de uso “fora da
bula”. Sem a indicação especifi-
cada no registro oficial, o uso
seria ilegal.

Mesmo sem eficácia comprova-
da, uma unidade particular de
saúde, em Fortaleza, começou
a distribuir um coquetel de me-
dicamentos que inclui a cloro-
quina e a ivermectina para o tra-
tamento de pessoas infectadas
pelo novo coronavírus. Os kits
com os remédios começaram a
ser distribuídos pela Unimed
Fortaleza anteontem. O proto-
colo criado é exclusivo para os
clientes do plano de saúde e, pa-


ra retirar a medicação, o pacien-
te ou um representante autori-
zado por ele precisa apresentar
receituário médico de controle
especial, que é válido por dez
dias, termo de consentimento
assinado pelo paciente, cartão
da Unimed Fortaleza e um docu-
mento oficial com foto.
A unidade conta com 15 mil
tratamentos de cloroquina e 15
mil de ivermectina. A rede escla-
rece ainda que “a distribuição
dos medicamentos depende da
prescrição médica”. “A cloro-
quina e ivermectina estão em
falta nas farmácias do Brasil, en-
tão criamos esse protocolo com
todos os cuidados, orientando
nosso médicos sobre como

prescrever essas medicações”,
afirma o presidente da Unimed
Fortaleza, Elias Leite.
Questionada se haverá distri-
buição de kits com cloroquina
pela rede pública, a Secretaria
da Saúde do Estado (Sesa) não
informa se adotará a medida.
Em nota, a pasta afirma que “a
prescrição deverá ser feita por
decisão do médico com o pa-
ciente e com familiares”. A dis-
tribuição de medicamentos
também foi adotada pela Uni-
med de Belém. Além da cloro-
quina e da ivermectina, o kit
contém azitromicina. Na capi-
tal do Pará, a entrega é feita em
drive-thru./ LÔRRANE MENDONÇA,
ESPECIAL PARA O ESTADO

l Embate

OMS aceita só


estudos clínicos


Regra sobre


cloroquina


sai, mas com


pouco efeito


l Cloroquina ou tubaína

Ao menos 8 Estados não pretendem


aderir a uso geral da substância


Litoral rejeita turistas; isolamento cai. Pág. A12 }


Eles acreditam que
famílias podem cobrar a
utilização; para
advogados, iniciativa é
mais simbólica e política

“Quando não tem o que
fazer, as pessoas querem
qualquer coisa.”
Gonzalo Vecina
MÉDICO SANITARISTA

“Queremos garantir que o
tratamento de brasileiros
não seja retardado.”
Mayra Pinheiro
SECRETÁRIA DE GESTÃO DO TRABALHO
E DA EDUCAÇÃO

Ontem, a Organização Mun-
dial da Saúde (OMS) reco-
mendou que a cloroquina e
a hidroxicloroquina sejam
usadas apenas em estudos
clínicos contra o coronaví-
rus, dentro de hospitais,
ressaltou que não há eficá-
cia comprovada desses me-
dicamentos no combate à
covid-19 e alertou para os
efeitos colaterais.
Segundo a Sociedade Bra-
sileira de Imunologia (S-
BIm), a escolha da terapia
com cloroquina ou hidroxi-
cloroquina vem na contra-
mão da experiência mun-
dial e científica. “Este posi-
cionamento não apenas ca-
rece de evidência científica,
além de ser perigoso”, infor-
mou em comunicado assina-
do por 22 especialistas. Pes-
quisas já publicadas em im-
portantes revistas médicas,
como New England Journal
of Medicine e o Journal of the
American Medical Associa-
tion , indicam resultados na-
da promissores.

PARA ENTENDER

MÁRCIO PINHEIRO/SESA-12/5/

Documento sem assinatura do Ministério da


Saúde não pode ditar regras nem ao SUS


O remédio. Para protocolo, existe um processo longo, que inclui a comprovação científica

“A gente sabe que não há
medicação 100% eficaz. A
maioria dos pacientes
melhora sem tomar nada,
pode tomar cloroquina ou
tubaína, vai dar na mesma.
É um debate equivocado.”
Carlos Lula
SECRETÁRIO DE SAÚDE DO MARANHÃO,
EM UMA ALUSÃO À IRONIA FEITA POR
BOLSONARO, EM LIVE.

‘Não faremos porque a


ciência não recomenda.


E em São Paulo nós


seguimos o que diz a


ciência’, afirma Doria

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