O Estado de São Paulo (2020-05-21)

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O ESTADO DE S. PAULO QUINTA-FEIRA, 21 DE MAIO DE 2020 Política A


BRASÍLIA


Após dias de “fritura”, o presi-
dente Jair Bolsonaro anunciou
ontem a demissão de Regina
Duarte do comando da Secreta-
ria Especial da Cultura. A atriz
ficou dois meses e meio no car-
go e vai assumir agora a dire-
ção da Cinemateca Brasileira,
que fica em São Paulo. O substi-
tuto de Regina deverá ser o
ator Mário Frias, também apoi-
ador de Bolsonaro (
mais infor-
mações nesta página
).
O presidente montou uma es-
tratégia para a “saída honrosa”.
Trata-se da quarta troca na Cul-
tura em 505 dias de governo Bol-
sonaro. A condução da pasta é
alvo de polêmicas e constantes
críticas, que se avolumaram
com a falta de investimentos
em políticas públicas em meio à
pandemia do coronavírus. Co-
mo revelou o Estadão , Bolsona-
ro estava incomodado com a au-
sência de Regina em Brasília e
dizia que ela era suscetível ao
setor, “todo de esquerda”. A
atriz, por sua vez, se sentia des-
prestigiada e pressionada pela
“ala ideológica” do governo.
A saída de Regina foi selada
em um café da manhã com Bol-
sonaro, no Palácio do Alvorada.
O encontro durou quase duas
horas. Nele, Regina reiterou ao
presidente o que já havia lhe re-
latado em outras conversas: as
inúmeras dificuldades enfrenta-
das na pasta. Ela admitiu que so-
fria um desgaste muito grande e
ganhou uma espécie de “prêmio
de consolação”.


Cena. Em uma cena que pare-
cia ensaiada, Bolsonaro publi-
cou nas redes sociais, depois
do café, uma mensagem acom-
panhada de um vídeo gravado


com Regina, nos jardins do Pa-
lácio da Alvorada. No post, o
presidente escreveu que Regi-
na contou a ele sentir falta da
família e, para que pudesse
continuar contribuindo com a
cultura e com o governo, assu-
miria a Cinemateca, em São
Paulo. Antes de entrar na equi-
pe de Bolsonaro, ela rompeu
um contrato de 50 anos com a
TV Globo.
“Olha, pessoal, eu vim aqui
perguntar para o presidente se
ele realmente está me fritando,
porque eu estou lendo isso na im-
prensa, que eu não acredito
mais. Mas, de qualquer forma, eu
queria que ele me dissesse pes-
soalmente: ‘Está me fritando,
presidente?’’’ , perguntou a atriz.
Sorridente, Bolsonaro acu-
sou, então, a imprensa de querer
desestabilizar o governo. “Regi-
na, toda semana tem um ou dois
ministros que, segundo a mídia,
estão sendo fritados. O objetivo
é sempre desestabilizar a gente
e tentar jogar o governo no chão.
Não vão conseguir. Jamais vou
fritar você”, respondeu ele.

Transição. Na mensagem pu-
blicada nas redes sociais, o pre-

sidente disse que, durante a
transição na Cultura, será mos-
trado o trabalho realizado por
Regina nos últimos 60 dias.
Apesar de ter passado por vá-
rios dissabores à frente da pas-
ta, a atriz deixou o cargo dizen-
do ter recebido um “presente”
do governo. Alegou, ainda, que
assumir a Cinemateca é um “so-
nho de qualquer pessoa de co-
municação, audiovisual, cine-
ma e teatro”. Na prática, po-
rém, ela assumirá um posto em
que será subordinada ao seu su-
cessor na Cultura.
O anúncio de ontem ocorreu
um dia após o presidente com-
partilhar nas redes sociais um
vídeo no qual o ator Mário
Frias fala sobre a possibilidade
de assumir o cargo da colega de
profissão. O vídeo é uma entre-
vista de Frias à emissora CNN
Brasil, exibida no último dia 6,
na qual o ator diz torcer por
Regina, mas afirma estar à dis-
posição de Bolsonaro. “Para o
Jair, o que ele precisar estou
aqui”, avisou. Além disso, na
sexta-feira, o secretário espe-
cial adjunto, Pedro Horta, foi
demitido do cargo. A dispensa
do número 2 de Regina foi assi-
nada pelo ministro da Casa Ci-
vil, Walter Braga Netto. /
JUSSARA SOARES, EMILLY BEHNKE e
TÂNIA MONTEIRO

Lula exalta criação do


‘monstro coronavírus’


e depois pede desculpa


Luiz Carlos Merten


Regina Duarte assume a Cine-
mateca Brasileira em meio à
maior crise. No fim de semana, a
Cinemateca divulgou documen-
to pedindo socorro. Sua situa-
ção é crítica. Ex-diretor da insti-
tuição e seu eterno guardião,
Carlos Augusto Calil, da ECA-
USP, levanta a questão de que
Regina Duarte não pode assu-


mir porque não existem cargos.
O que ela poderia fazer, na visão
dele, é trazer dinheiro de Brasí-
lia para resolver o imbróglio.
O documento é esclarecedor.
Maior arquivo de filmes do País,
cuja trajetória é reconhecida in-
ternacionalmente, a Cinemate-
ca enfrenta uma situação limite,
esclarece o pedido de socorro.
“Em meados de maio e não rece-
beu ainda nenhuma parcela do
orçamento anual, cujo montan-
te é da ordem de R$ 12 milhões.”
Ele prossegue: “Após sofrer
uma intervenção do Ministério
da Cultura em 2013, que desti-
tuiu sua diretoria e retirou-lhe a
autonomia operacional, vem en-
frentando um processo contí-

nuo de enfraquecimento institu-
cional que culmina na atual amea-
ça de total paralisia”, diz Calil.
A Cinemateca tem sob sua
guarda o maior acervo audiovi-
sual da América do Sul, cuja pre-
servação demanda cuidados
permanentes de técnicos espe-
cializados e manutenção de es-
tritos parâmetros de conserva-
ção em baixa temperatura e
umidade relativa.
“Estão sob sua custódia cole-
ções públicas e privadas que
constituem a memória audiovi-
sual do País. Além do seu intrín-
seco valor cultural, as obras
dos produtores nacionais agre-
gam valor econômico; são fon-
te de renda industrial que man-

tém a dinâmica do setor. A
ameaça que paira sobre a Cine-
mateca não é a destruição de
valores apenas simbólicos,
mas igualmente tangíveis”,
complementa Calil.
O contrato do governo fede-
ral com a organização social que
a administra – Associação de Co-
municação Educativa Roquette
Pinto (ACERP) – foi encerrado
por iniciativa do MEC. A atual
Secretaria Especial da Cultura,
responsável pela Cinemateca,
tem seus vínculos administrati-
vos divididos entre os ministé-
rios da Cidadania e do Turismo.
“Essa situação esquizofrêni-
ca dificulta a atuação do gover-
no com a urgência necessária pa-
ra impedir a falência da Cinema-
teca, enquanto a administração
pública se dedica a desenhar
uma solução de longo prazo.”
O documento afirma que o
descaso da Secretaria do Audio-
visual do extinto Ministério da

Cultura para com a Cinemateca
acarretou o incêndio de feverei-
ro de 2016 – o quarto sofrido pe-
la instituição em sua história –
em que se perderam definitiva-

mente mil rolos de filmes anti-
gos. O documento ganhou ade-
sões importantes e já repercutiu
internacionalmente em impor-
tantes publicações europeias.

O ex-presidente Luiz Inácio Lu-
la da Silva precisou se desculpar
ontem após ter dito que o novo
coronavírus foi positivo para
mostrar ao governo Bolsonaro
que é importante ter um Estado
forte contra crises e em oposi-
ção à agenda liberal.
A declaração polêmica foi da-
da anteontem durante entrevis-


ta à revista Carta Capital. “O
que eu vejo? Quando eu vejo es-
sas pessoas acharem que tem
que vender tudo que é público e
que tudo que é público não pres-
ta nada... Ainda bem que a natu-
reza, contra a vontade da huma-
nidade, criou esse monstro cha-
mado coronavírus, porque esse
monstro está permitindo que

os cegos enxerguem, que os ce-
gos comecem a enxergar, que
apenas o Estado é capaz de dar
solução a determinadas crises.”
A frase do ex-presidente foi
mal recebida inclusive entre pe-
tistas, que pediram que ele se re-
tratasse. “Usei uma frase total-
mente infeliz. E a palavra descul-
pa foi feita pra gente usar com
muita humildade”, disse Lula.
A declaração ganhou as redes
sociais e foi um dos assuntos
mais comentados no Twitter ao
longo do dia. “Na verdade, se eu
tivesse falado ‘infelizmente’,
em vez de ‘ainda bem’... Tentei
usar uma palavra para explicar,
que no menosprezado SUS, é
no auge da crise que a gente co-
meça a descobrir a importância

da instituição”, disse o ex-
presidente em uma live.
“Se algum dos 200 mi-
lhões de brasileiros ficou
ofendido, peço desculpas.
Sei o sofrimento que causa a
pandemia, a dor de ter os pa-
rentes enterrados sem poder
acompanhar”, afirmou.

l Polêmica

A


ala ideológica do governo venceu
uma batalha com a queda de Regina
Duarte da Cultura. Agora, o próximo
alvo é o ministro da Ciência, Tecnologia,
Inovações e Comunicações, Marcos Pon-
tes. Mas a cabeça do ex-astronauta não é
exigida pelo gabinete do ódio, como ocor-
reu com Regina. As negociações que po-
dem levar Pontes para o espaço fazem par-
te de um acordo com o Centrão, avalizado
pelo núcleo militar da Esplanada.
Dias antes de Regina cair, já se dizia no
Planalto que ela não estava entendendo “o
jogo bruto da política”. No caso de Pontes,
porém, uma outra queda de braço está em
curso. A pasta comandada por ele, com or-
çamento de R$ 14,4 bilhões para este ano,
é cobiçado tanto pelo PSD de Gilberto Kas-
sab como por parlamentares evangélicos.
No Ministério das Comunicações, em
Brasília, Kassab conta com um aliado. Tra-
ta-se do tucano Julio Semeghini, o n.º 2 de
Pontes. Semeghini foi um dos articulado-
res da candidatura do então governador
Geraldo Alckmin (PSDB) à Presidência.

O PSD recusa o rótulo de Centrão, mas,
embora atue em raia própria, tem proximi-
dade com integrantes do bloco, hoje na li-
nha de frente dos acertos com Bolsonaro
para salvá-lo de eventual processo de im-
peachment, em troca de cargos.
Apesar de ter sido tenente-coronel da
Força Aérea Brasileira (FAB), Pontes foi
para a reserva com apenas 43 anos, após
ficar famoso por ter sido o primeiro brasi-
leiro a viajar para o espaço, em 2006. Ele
não tem, no entanto, o apoio dos militares.
Além disso, o aval político com o qual Pon-
tes contava no PSL era justamente da ala
do partido que rompeu com Bolsonaro.
Diante de uma crise atrás da outra, o pre-
sidente se apressa para montar uma base
de sustentação no Congresso, adotando a
prática do toma lá, dá cá que dizia conde-
nar. O deputado Fábio Faria (PSD-RN),
genro do apresentador de TV Silvio San-
tos, é um dos que mais ajudam o Planalto
na tarefa de negociar a possível vaga no
Ministério das Comunicações.
Na tentativa de mostrar que desfruta da
confiança de Bolsonaro, Pontes apareceu
ao lado dele, na rampa do Planalto, na ma-
nifestação do último domingo. O ex-astro-
nauta e outros dez ministros se juntaram
ao presidente em mais um ato que contra-
riou as recomendações de isolamento so-
cial para combater o coronavírus.

lO ator Mário Frias é um dos
cotados para assumir a vaga de
Regina Duarte na Secretaria Es-
pecial da Cultura. Frias foi um
dos poucos artistas que compare-
ceram à posse da atriz, em mar-
ço. No início de maio, Frias, em
entrevista à CNN, anunciou apoio
ao presidente Jair Bolsonaro.
“Pro Jair, cara, o que ele preci-
sar eu tô aqui. Eu torço demais
pra Regina, mas pelo Brasil eu tô

aqui, o que for preciso. Respeito
o Jair demais, vejo o Brasil com
chance de finalmente ser respei-
tado”, disse o ator. O vídeo foi
compartilhado por Bolsonaro
anteontem, com o texto “Mário
Frias e a cultura”.
O carioca Mário Frias, de 48
anos, ficou conhecido nos anos
1990 como galã do seriado Ma-
lhação , da TV Globo. Em seu per-
fil no Twitter, ele usa a hashtag
#fechadocombolsonaro. O ator é
defensor da cloroquina no trata-
mento da covid-19 e já chamou o
presidente da Câmara, Rodrigo
Maia (DEM-RJ), de “golpista”. /
MARIA FERNANDA RODRIGUES

Skaf ataca Doria após


Bolsonaro cobrar ‘guerra’


l ‘Contribuição’

“Ainda bem que a
natureza criou esse
monstro chamado
coronavírus, porque esse
monstro está permitindo
que os cegos enxerguem.”
Lula
EX-PRESIDENTE

Ministro da Ciência


e Tecnologia pode


ser o próximo alvo


]
CENÁRIO: Vera Rosa

‘Fechado’ com


presidente, ator é


cotado para cargo


Uma semana após o presidente
Jair Bolsonaro declarar “guer-
ra” ao governador João Doria
(PSDB) e convocar empresá-
rios ligados à Fiesp a “jogar pesa-
do” com o tucano, o presidente
da entidade, Paulo Skaf (MDB),
publicou um vídeo com duras
críticas ao governo paulista.
“Essas medidas que o gover-
no do Estado de São Paulo vem
tomando de forma horizontal,
tratando todos os municípios
da mesma forma, prejudica to-

do mundo. Se nós temos 645 ci-
dades em São Paulo, são 645 his-
tórias”, disse Skaf, aliado políti-
co de Bolsonaro. “Vamos com-
pletar 70 dias parados. Não co-
nheço nenhum país do mundo
que tenha passado de 70 dias.”
Secretário de Desenvolvi-
mento Regional de São Paulo e
presidente do PSDB paulista,
Marco Vinholi reagiu. “O gesto
de Skaf ignora o sofrimento de
cinco mil famílias”, disse ele ao
Estadão. / PEDRO VENCESLAU

Sem dinheiro, instituição
que mantém mais


completo acervo


audiovisual da América


do Sul pede socorro


Atriz assume Cinemateca em meio


à maior crise financeira do órgão


GABRIELA BILO/ ESTADÃO

“Regina Duarte relatou que
sente falta de sua família,
mas, para que ela possa
continuar contribuindo
com o governo e a Cultura,
assumirá, em alguns dias, a
Cinemateca em SP. Nos
próximos dias, durante a
transição será mostrado o
trabalho já realizado nos
últimos 60 dias.”
Jair Bolsonaro
PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Demitida,


Regina leva


‘prêmio de


consolação’


Secretária da Cultura fica só dois meses e


meio no cargo e assume órgão de audiovisual


Saída. Regina Duarte, com a deputada Carla Zambelli, deixa o Alvorada, depois de ser demitida da Secretaria da Cultura
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