O Estado de São Paulo (2020-05-31)

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A12 DOMINGO, 31 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


Internacional


Trump oferece Exército para conter


protestos violentos em Minneapolis


]
Cenário: Christopher Ingraham / W.POST

Beatriz Bulla


CORRESPONDENTE / WASHINGTON


Milhares de agentes adicio-


nais da Guarda Nacional fo-


ram enviados a Minneapolis,


no Estado de Minnesota, e tro-


pas do Exército estavam de


prontidão diante da perspecti-


va de mais uma noite de violen-


tos protestos na cidade por


causa da morte de George


Floyd, um homem negro de 46


anos, por um policial branco


na segunda-feira durante uma


abordagem. Protestos tam-


bém estavam programados


em outras cidades do país.


A decisão do governador de


Minnesota, Tim Walz, de convo-


car todos os agentes da Guarda


Nacional do Estado, mais de


13.200, foi tomada em meio ao


aumento da violência e depois


de os manifestantes desafiarem


o toque de recolher na sexta-fei-


ra e incendiarem mais constru-


ções, entre eles um banco, um


restaurante e um posto de gasoli-


na. O governador disse que a me-


dida era necessária, pois agitado-


res de fora estavam usando os


protestos para provocar o caos


na cidade.


O presidente Donald Trump,


que ofereceu soldados e agentes


de inteligência para pôr fim aos


protestos, disse que as autorida-


des em Minnesota têm de ser


mais duras com os manifestan-
tes. Ontem, no Centro Espacial
Kennedy, na Flórida, Trump dis-
se que a morte de Floyd foi “uma
tragédia grave”, mas a memória
dele “foi desonrada pelos revolto-
sos, saqueadores e anarquistas”.
Manifestantes entraram em
choque ontem em Washington
com agentes do serviço secreto
quando tentavam marchar do
Capitólio para a Casa Branca. Os
agentes usaram spray de pimen-
ta e cassetetes contra a multidão.
Trump afirmou ontem que os
manifestantes teriam sido “rece-
bidos com os cães mais cruéis e
as armas mais ameaçadoras”, ca-
so violassem a cerca da Casa
Branca na sexta-feira à noite.
“Um grande trabalho foi feito pe-
lo serviço secreto na Casa Bran-
ca. Eu estava dentro e me senti
totalmente seguro”, disse
Trump no Twitter.
Nem a acusação formal do poli-
cial pela morte de Floyd consegui-
ram conter os ânimos. Em um ví-
deo divulgado nas redes sociais, o
policial Derek Chauvin aparece
em um vídeo ajoelhando sobre o
pescoço de Floyd durante oito mi-
nutos, enquanto Floyd grita:
“Não consigo respirar!”, até per-
der a consciência.
Segundo a CNN, protestos fo-
ram registrados em ao menos 30
cidades na sexta-feira. Entre
elas, Nova York, Washington,

Oakland, Houston, Atlanta, Kan-
sas, Detroit, Las Vegas, Denver,
San José e Memphis, Boston,
Phoenix, Fort Wayne, Lincoln,
Milwaukee e Chicago. Os atos
violentos deixaram duas pes-
soas mortas entre sexta-feira e a
madrugada de ontem – um ho-
mem, de 19 anos, em Detroit e
um policial em Oakland.
O governador do Texas, Greg
Abbott, enviou ontem mais de
1.500 agentes estaduais às cida-
des de Houston, Dallas, Austin e
San Antonio para ajudar a conter
os protestos. Manifestantes re-
voltados voltaram ontem às ruas
de Nova York e, apesar de o pre-
feito Bill de Blasio ter pedido cal-
ma, um carro de polícia foi ataca-
da com um coquetel molotov.
Ninguém ficou ferido.
Os protestos descentraliza-
dos não são apenas por Floyd,
mas pela perpetuação nos EUA
de uma política de segurança
que continua a mirar os negros, a
despeito de revoltas semelhan-
tes como a de 1992, quando mani-
festações violentas tomaram as
ruas de Los Angeles após um júri
composto majoritariamente por
brancos absolver quatro poli-
ciais, também brancos, acusados
de uso excessivo de força contra
o motorista negro Rodney King.

Black Lives Matter. Em 2013,
quando o vigia que matou Tray-

von Martin, de 17 anos, na Flóri-
da, foi inocentado por um júri, a
americana Alicia Garza publicou
em seu perfil de Facebook a frase
“nossas vidas importam”. Uma
amiga chamada Patrisse Khan-
Cullors emplacou a hashtag
#BlackLivesMatter e Opal Tome-
ti ajudou a criar a partir dali uma
plataforma online para o que se
tornaria um movimento. “É uma
tristeza profunda. Desgosto
atrás de desgosto. Pensei na famí-
lia dele e na dor insuperável que
devem estar sentindo agora. To-
dos nós estamos sofrendo jun-
to”, disse Patrisse em entrevista
ao Estadão, ao falar sobre a mor-
te de Floyd.
A frase Black Lives Matter está
em camisetas, placas e gritos dos
manifestantes que foram às ruas
do país na última semana. Mas o
movimento não foi responsável
por convocar os protestos, que

têm brotado de forma orgânica
nas cidades. Patrisse acredita
que a frase se tornou “uma ora-
ção” atual quando o movimento
foi criado e também nos dias de
hoje, o que faz com que seja um
mote de pessoas comuns, sem li-
gação com o grupo.
“O poder do ‘Black Lives Mat-
ter’ está na maneira pela qual reu-
niu a diáspora africana. Essas
três palavras foram uma declara-
ção e, de verdade, uma oração pa-
ra todos nós que estávamos de
luto. Essas palavras continuarão
com esse significado até que o ra-
cismo, o patriarcado e o capitalis-
mo sejam desmontados e consi-
gamos construir algo centrado
no nosso bem estar. É uma verda-
de agora, como era há 7 anos
quando começamos”, afirma a
estrategista política, cofundado-
ra do Black Lives Matter e funda-
dora do Reform LA Jails, pela re-
forma do sistema criminal.
Criado oficialmente em 2013,
o Black Lives Matter ganhou im-
pulso em 2014 quando Eric Gar-
ner, também negro, avisou 11 ve-
zes a um policial em Nova York:
“eu não consigo respirar”. A sú-
plica para que o agente soltasse
seu pescoço foi em vão. Garner
morreu por estrangulamento.
Na segunda-feira, Floyd fez o
mesmo apelo quando, algema-
do, teve seu pescoço prensado
contra o chão por um policial.

Em todos os casos, os responsá-
veis pelo crime justificaram a vio-
lência como um incidente gera-
do após abordagem policial de
suspeito. O vídeo de Floyd sendo
asfixiado foi gravado por uma tes-
temunha do crime e viralizou na
internet.
Patrisse não quis dizer se os Es-
tados Unidos avançaram ou não
no combate ao racismo policial
desde que ajudou a fundar o mo-
vimento, há sete anos, mas apos-
ta que momento atual pode ser
histórico, com a mobilização so-
bre Floyd e uma crise de saúde e
econômica que traz à tona desi-
gualdades em razão de raça. “Es-
tamos testemunhando uma
oportunidade de expor como e
por que as instituições de polícia
e encarceramento que temos fa-
lharam, e precisamos conversar
seriamente sobre isso. Temos de
falar sobre o fato de que investi-
mos quase US$ 100 bilhões em
policiamento, mas depois dize-
mos não ter verba para uma saú-
de universal neste país, em meio
a uma pandemia”, afirma.
A pandemia expôs questões es-
truturais que tornam a popula-
ção negra mais vulnerável à co-
vid-19, como o trabalho em fun-
ções consideradas atividades es-
senciais, que não permitem isola-
mento, e a falta de plano de saú-
de, o que também aumenta a inci-
dência de doenças crônicas.

Governador do Estado de Minnesota envia agentes da Guarda Nacional à cidade e militares ficam de prontidão diante da perspectiva de


outra noite de revolta pela morte de um homem negro por um policial branco; manifestações são registradas em outras 30 cidades dos EUA


A


atual turbulência em Minneapolis foi
desencadeada pelo assassinato de
George Floyd, um cidadão negro sus-
peito de passar uma nota falsa de US $ 20.
Mas a raiva e o desespero dos manifestan-
tes jogam luz sobre um descontentamento
que vem sendo gestado há muito tempo: a
cidade conhecida como um dos lugares
mais agradáveis dos EUA também é cenário
de algumas das maiores disparidades ra-
ciais do país. Em Minneapolis, uma família
negra ganha por ano menos da metade do
que uma família branca, em média. E a pro-
priedade de imóveis entre negros é três ve-
zes menor que entre as famílias brancas.
Como resultado, muitas famílias negras

foram efetivamente excluídas da prosperi-
dade de que desfruta a população predomi-
nantemente branca da cidade.
Cada família negra de Minneapolis ga-
nhou, em média, US$ 36 mil em 2018, segun-
do dados do Departamento do Censo dos
EUA. Embora esse número seja melhor que
o das famílias negras de muitas outras
áreas metropolitanas do país, está muito
longe dos quase US$ 83 mil que uma família
branca ganha em média na cidade. Em ter-
mos porcentuais, a renda da família negra
chega a apenas 44% dos ganhos médios da
família branca.
A diferença de renda entre lares de Min-
neapolis se reflete nos dados sobre a rique-
za – nesse caso, nas taxas de propriedade de
imóveis, pois as casas são o principal com-
ponente da riqueza da classe média. Aproxi-
madamente 25% das famílias negras de Min-
neapolis possui casa própria, uma das taxas
de propriedade de imóveis entre negros
mais baixas dos EUA.

As raízes dessas disparidades são profun-
das: na primeira metade do século 20, por
exemplo, as transações imobiliárias em mui-
tos bairros de Minneapolis estavam condi-
cionadas a disposições que reservavam o
direito de propriedade às famílias brancas.
“As referidas instalações nunca serão vendi-
das, cedidas, arrendadas, sublocadas ou ocu-
padas por qualquer pessoa ou pessoas cujo
sangue não seja integralmente da chamada
raça caucasiana ou branca”, estabelece uma
dessas disposições.
Antes desses contratos, “Minneapolis
não era particularmente segregada”, segun-
do os autores do projeto Mapping Prejudi-
ce (algo como Mapa do Preconceito, em tra-
dução livre) da Universidade de Minnesota.
Mas, “à medida que se disseminou o uso de
cláusulas racialmente restritivas, os negros
foram empurrados para determinados bair-
ros da cidade. E, mesmo com o número de
habitantes negros continuando a crescer,
faixas cada vez maiores da cidade ficaram

totalmente brancas”.
Embora não sejam mais aplicáveis, esses
contratos até hoje continuam moldando os
padrões de assentamento nas Cidades Gê-
meas (como é chamada a região metropoli-
tana de Minneapolis e Saint Paul).
As comunidades negras da cidade tam-
bém sofreram outras formas de repressão.
Nas décadas de 50 e 60, os planejadores ur-
banos devastaram o bairro de Rondo, histo-
ricamente de negros, transformando sua
principal avenida na rodovia Interestadual


  1. “Um em cada oito negros de Saint Paul
    perdeu sua casa para a I-94”, segundo a So-
    ciedade Histórica de Minnesota, e “muitos
    negócios nunca mais reabriram”.
    “Se as crescentes disparidades em educa-
    ção, economia e justiça criminal não forem
    enfrentadas imediatamente, nossos filhos
    não terão futuro”, alertou a Associação Na-
    cional para o Progresso das Pessoas de Cor
    em um relatório de dezembro de 2019. /
    TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU


YURI GRIPAS/REUTERS

lOração


Desigualdade racial


na cidade é uma das


maiores dos EUA


“O poder do ‘Black Lives
Matter’ está na maneira
pela qual reuniu a diáspora
africana. Essas três palavras
foram uma declaração e
uma oração para todos nós
que estávamos de luto”
Patrisse Khan-Cullors
ATIVISTA POLÍTICA E COFUNDADORA
DO BLACK LIVES MATTER

Revolta. Multidão protesta em frente ao Capitólio, em Washington; para ativista, marchas são contra perpetuação nos EUA de uma política de segurança que continua a mirar os negros

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