O Estado de São Paulo (2020-05-31)

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A16 Metrópole DOMINGO, 31 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


ROSELY


SAYÃO


M


ais ou menos a metade dos
alunos das escolas públi-
cas de São Paulo acessa au-
las online; a porcentagem de alunos
de escolas particulares que conse-
gue manter contato com a escola e
os professores deve ser um pouco
maior, mas não muito. É que, quan-
do consideramos escolas particula-
res, em geral pensamos nas escolas
grandes e mais conhecidas, mas a
maioria delas é pequena, está locali-
zada em bairros, acolhe estudantes
da vizinhança, cobra mensalidades
baixas e são carentes de recursos tec-
nológicos e de formação de profes-
sores.
Bem, mas se pelo menos metade
dos estudantes está continuando
seus estudos de maneira remota, is-
so significa que milhares de famílias
estão às voltas com essa novidade. E
não tem sido fácil para os pais acom-
panhar os filhos nessa empreitada.

Por isso, é bom esclarecer alguns pon-
tos. Os alunos têm realizado a famosa
educação a distância (EAD)? Não: eles
estão tentando aprender com seus pro-
fessores mediados pela tecnologia. Es-
tes criaram rapidamente meios de
manter seus alunos estudando, em ge-
ral transformando o ensino presencial
em remoto. Não se constrói uma meto-
dologia de educação a distância de um
dia para o outro: exige formação espe-
cífica dos docentes, por exemplo.
A EAD oferece tutores remotos a
quem os alunos podem recorrer quan-
do enfrentam dúvidas ou dificuldades
em determinados tópicos, realiza tra-
balhos que ocorrem simultaneamente
com alunos e professor em tempo real


  • a chamada atividade síncrona – e tam-
    bém as atividades assíncronas, ou seja,
    as que não ocorrem ao mesmo tempo,
    além de distribuir os conteúdos a se-
    rem ensinados em diferentes dese-
    nhos de plataformas e ambientes. É


muita diferença!
É, então, ensino domiciliar, ou ho-
meschooling, que a criançada está pra-
ticando? Também não! No ensino do-
miciliar, os filhos não são matricula-
dos em escola e, portanto, não há a par-
ticipação dela nos estudos. Apenas os
pais, parentes ou mesmo os profissio-
nais contratados por eles são responsá-
veis pela aprendizagem das crianças
da família.
Esclarecido o fato de que os alunos
estão estudando e realizando tarefas
escolares numa situação de emergên-
cia, ou seja, muitas vezes com oferta de
trabalhos improvisados, o que as famí-
lias podem fazer para ajudar os filhos?
Como manter o filho atento às vi-
deoaulas, que podem ter duração de
mais de uma hora? Como obrigar o fi-
lho a ficar conectado nas atividades es-
colares? Como ajudar nas tarefas?
Muitas famílias estão perdidas nes-
sa situação; escolas também, já que
nem sempre elas se lembram que não
dá para oferecer o mesmo ensino ante-
riormente planejado e cobrar a mesma
aprendizagem dos alunos.
Para você ter ideia, de uma rápida
enquete em minha página de rede so-
cial em que tive a colaboração de mui-
tas mães e pais que contaram como
está sendo o ensino escolar nesse pe-
ríodo, vou citar alguns exemplos narra-

dos. Há alunos do ensino médio tendo
até 9 horas de aulas por dia; crianças de
3 (3!) anos tendo aulas expositivas pe-
lo menos uma vez por semana e duas,
quando têm 5 anos; e crianças de 9 a 12
anos de idade que passam a manhã as-
sistindo às aulas e ainda recebem tare-
fas de casa.
Calma lá, minha gente! Desse jeito,
vamos acabar enlouquecendo famílias
e alunos. Dá para lembrar que eles es-
tão estressados, ansiosos, angustia-
dos, inseguros e com receios com a
pandemia? A conta de tanto trabalho e
de tantas cobranças sobre eles virá de-
pois, sabia?

E, como se não bastasse, há escolas
fazendo provas neste período. O que
podemos avaliar nesse contexto? O
aprendizado do aluno, a adaptação de-
le ao ensino remoto e às estratégias
que a escola criou? Ou será que avalia-
remos se a metodologia criada pela es-
cola está adequada? Essa última alter-
nativa é a melhor possibilidade.
As crianças vão aprender como
aprendiam antes? Provavelmente,
não. Algumas vão aprender em outro

ritmo, outras não conseguirão focar
a atenção para aprender tudo o que
seu potencial permitiria e outras,
ainda, resistirão bravamente à ajuda
dos pais. Mas – surpresa! –, algumas
aprenderão bem mais!
Vamos lembrar: a escola básica
tem a duração de 12 anos letivos, mi-
nha gente. Alguns meses a menos –
dois, três ou até seis – não vão com-
prometer a vida de nenhum aluno.
Os trabalhos escolares de seu fi-
lho estão conturbando a vida fami-
liar e a pessoal dele? Converse com a
escola, apresente a situação sem ro-
dar a baiana e peça sugestões. Este é
um bom momento para recriarmos
em outras bases a parceria escola-fa-
mílias.
Seu filho não consegue ficar aten-
to às aulas? Saiba que na escola isso
também ocorre, com a diferença de
que, lá, há um enquadre pedagógico
e, em casa, não. Outras crianças da
mesma sala conseguem? Lembre-se
que as crianças são diferentes, o que
não significa que sejam piores ou
melhores na aprendizagem.
Em resumo: não se estresse, nem
estresse ainda mais seus filhos com
a vida escolar remota.

]
É PSICÓLOGA

A pandemia de coronavírus,


marcada pelas atualizações


constantes do número de infec-


tados e mortes em várias partes


do País e do mundo e pela altera-


ção profunda da vida cotidiana,


modifica a relação das pessoas


com o luto e confunde as diferen-


tes fases emocionais até a aceita-


ção da morte. Essa é a opinião do
psicólogo Marcelo Santos, pro-
fessor de Psicologia da Universi-
dade Mackenzie Campinas.
“Estágios como negação, de-
pressão, raiva e barganha, que
não ocorrem necessariamente
nessa ordem, se confundem
porque as pessoas revivem a
morte diariamente, seja na hora
de ligar a TV ou quando alguém
fala da pandemia. Com isso, o
luto sofre um alongamento e a
aceitação pode ficar mais di-
fícil”, diz o especialista.
As teorias citadas por Santos,
que dividem a relação com a

morte em fases foram desenvol-
vidas pela psiquiatra suíça Eliza-
beth Kubler-Ross. Outras teo-
rias apontam um processo dual
do luto no qual as ondas (ou osci-
lações) entre perda e restaura-
ção se alternam.
Para Maria Julia Kovács, pro-
fessora do Instituto de Psicolo-
gia da USP, o luto, processo de
elaboração pela perda de uma
pessoa querida que envolve sen-
timentos de diversas ordens e
intensidades, encontra dificul-
dades adicionais durante a pan-
demia. Mas existem formas de
tentar aliviar a dor. “Velórios e

enterros virtuais, atendimento
do luto por psicólogos online e
projetos de manutenção de lem-
branças e memórias virtuais
são meios que ajudam nesse
processo. É uma forma de ali-

viar a dor no momento”, diz.
A mãe do representante co-
mercial Robson (nome fictício)
morreu de covid-19 após dez
dias de internação em um hospi-
tal particular de São Paulo, o pai
foi sozinho reconhecer o corpo
e ao crematório. Quando a pan-
demia passar, ele quer organizar
uma missa para celebrar a vida
de sua mãe, que tinha 57 anos e
nenhuma doença preexistente.
Paralelamente à dor do luto,
muitas famílias têm de convi-
ver com o estigma, ou seja, a
marca pela morte de parentes.
“Essas famílias têm de conviver

com a dificuldade da perda e fi-
cam expostos à estigmatização
de possível contágio. Elas so-
frem duplamente. A verdade é
que todos estamos sujeitos ao
coronavírus. Aquele que estig-
matiza poderá ser estigmatiza-
do”, explica Santos.
O especialista lembra que
existem exemplos históricos de
estigmatização relacionados às
doenças. No livro A Praga, a jor-
nalista Manuela Castro mostra
como as pessoas com hansenía-
se eram colocadas à margem da
sociedade em função do perigo
do contágio. Entre 1924 e 1962,
o Brasil utilizou a internação
compulsória de pacientes com
hanseníase como forma de con-
trole da doença. / G.J.

Gonçalo Junior


Em um apartamento de clas-


se média do Paraíso, zona sul


de São Paulo, os seis morado-


res contraíram o novo coro-


navírus em março. Em uma


semana, a família ficou pela


metade, pois o pai e dois fi-


lhos não resistiram. Um deles


era um porteiro aposentado


de 62 anos que se tornou a pri-


meira vítima da doença no


Brasil no dia 16.


Hoje, a mãe, de 84 anos, e os


dois filhos restantes, com média


de 60 anos, estão recuperados da


doença e tentam recomeçar a vi-


da. Um dos desafios é o noticiá-


rio diário que atualiza a dor. Ou-


tro drama é a solidão. Pelo medo


da contaminação, parentes e vizi-


nhos evitam visitas ao aparta-


mento grande e confortável.


Algumas famílias das primei-


ras vítimas da covid-19 no Brasil


relatam a dor da perda revivida


quase diariamente com o avanço


da doença. Traumatizadas, elas


confessam também medo exces-


sivo de contaminação. Outras ob-


servam a trajetória de quem pas-


sou como força e inspiração para


tentar dar a volta por cima, mas


todas lamentam a falta do ritual


da despedida. Velórios e funerais


de pacientes de covid-19 não são


recomendados pelo Ministério


da Saúde desde 25 de março.


A enfermeira Ana Paula da Sil-
va conta que a dor mais intensa
desse período de quarentena es-
tá ligada à falta do adeus para sua
mãe, Juraci Augusta da Silva,
uma das primeiras profissionais
de saúde vitimadas pela doença.
As roupas levadas para a víti-
ma não foram utilizadas e o cai-
xão foi lacrado. Apenas os paren-
tes mais próximos comparece-
ram ao cemitério São Pedro, na
zona leste de São Paulo. A última
vez que as duas tiveram contato
foi no momento da internação.
“Não tivemos oportunidade de
despedida. Mesmo sendo da
área da saúde e entendendo que
a morte é um processo natural,
sinto muito falta de dizer ‘vai
com Deus, fique em paz’”.
Com mais de 25 anos de traba-
lho na área da saúde, dona Juraci,
mineira de Montes Claros, atua-
va como técnica de enfermagem
em um hospital público da zona
leste paulistana. Por causa dos
seus 72 anos, ela seria afastada
por pertencer ao grupo de risco
da covid-19. Além disso, era trans-
plantada renal e hipertensa. “Ela
deveria ter sido afastada antes.
Acho que demoraram um pou-
co”, protesta a filha. Dona Juraci
era uma mulher independente e
morava sozinha. Ninguém mais
na família se contaminou.

Máscaras em casa. Os três so-


breviventes do apartamento no
Paraíso seguem à risca as reco-
mendações de isolamento so-
cial, pois temem uma nova infec-
ção. O virologista Paulo Eduardo
Brandão, da Faculdade de Medi-

cina Veterinária e Zootecnia da
Universidade de São Paulo
(USP), afirma que a reinfecção é
uma probabilidade real quando
se estudam os outros coronaví-
rus, mas casos comprovados pe-
lo novo coronavírus ainda estão
pendentes. “A ideia de que as pes-
soas criam anticorpos e se tor-
nam imunes depois de infecta-
das é mais consistente para vírus
como sarampo e rubéola, por
exemplo. Mas não para os coro-
navírus”, explica.
Os cuidados com higienização
na casa da primeira vítima de co-
vid-19, que antes eram rigorosos,
se tornaram quase uma obses-

são. O trauma foi tão grande que
eles usam máscara até dentro de
casa. Embora seja a principal for-
ma de lazer da família, a televisão
faz com que as lembranças da tra-
gédia sejam reavivadas frequen-
temente. “Todas as notícias são
sobre isso. A gente não consegue
esquecer ou pensar em outra coi-
sa”, diz um dos irmãos, que está
desempregado.
A solidão pesa bastante na ca-
sa. Vizinhos contam que percebe-
ram certo distanciamento de al-
guns familiares. Só os irmãos
que vivem em outros endereços
levam comida e remédios.
Parentes da primeira vítima da

covid no Rio de Janeiro também
se sentem discriminados. “As
pessoas pensam que a gente po-
de transmitir a doença”, disse
um sobrinho de dona Cleonice,
empregada doméstica de 63
anos que morava em Miguel Pe-
reira e também morreu em mar-
ço. Ela trabalhou dez anos na
mesma casa no Alto Leblon, zo-
na sul da cidade. Depois de cui-
dar da patroa que voltou com pro-
blemas respiratórios da Itália (o
teste confirmou que se tratava
de coronavírus), ela começou a
sentir falta de ar na segunda-fei-
ra. Em dois dias, foi hospitaliza-
da, entubada e morreu.

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


E-MAIL: [email protected]
ESCREVE QUINZENALMENTE

lAlternativas


lEstigmatização


Boletim de São Paulo mostra maturidade da cidade para reabrir. Pág. A17 }


Vida escolar remota


Pais, não se estressem nem a


seus filhos, pois alguns meses


não comprometerão o aluno


“Velórios e enterros virtuais
e atendimento do luto por
psicólogos online ajudam
nesse processo.”
Maria Julia Kovács
PROFESSORA DO INSTITUTO
DE PSICOLOGIA DA USP

Pandemia modifica relação das pessoas com o luto


Mudanças na vida


cotidiana confundem


as diferentes fases


emocionais da aceitação


da morte, diz professor


FELIPE RAU/ESTADÃO

Famílias


revivem dor


da morte


a cada dia


“Essas famílias têm de
conviver com a dificuldade
da perda e ficam expostas à
estigmatização de possível
contágio.”
Marcelo Santos
PROFESSOR DE PSICOLOGIA DA
UNIVERSIDADE MACKENZIE CAMPINAS

Com medo de contaminação, parentes


agora têm obsessão pela higienização


Sem adeus. Ana Paula lamenta não ter podido se despedir da mãe, que trabalhou por 25 anos na área de enfermagem

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