O Estado de São Paulo (2020-05-31)

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O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 31 DE MAIO DE 2020 Política A


ELIANE


CANTANHÊDE


P


ara quem imagina, ou teme,
que tudo está perdido, eis a
boa notícia: as instituições e
os setores responsáveis da socieda-
de se movem contra a escalada que
vai de impropérios imbecis a amea-
ças perigosas. Não há reuniões se-
cretas pela madrugada, apenas a ve-
lha e boa troca de impressões, infor-
mações e perplexidade, à luz do dia.
Em plena pandemia, todos conver-
sam freneticamente e há uma saudá-
vel resistência democrática no País.
O primeiro passo é contar a verda-
de, desmontar a versão de que o presi-
dente Jair Bolsonaro é a vítima e que

os palavrões e absurdos de 22 de abril
foram “desabafo” de um homem perse-
guido com sua família, amigos e aliados.
Afinal, quem ameaça quem? Quem ata-
ca e quem é vítima? Quem precisa de
um “basta, pô!”? Certamente, quem faz
discurso em atos que se apropriam das
cores e símbolos nacionais, com o QG
do Exército ao fundo, para atacar a de-
mocracia e a ordem constituída.
E não é de hoje. Quem disse que “bas-
ta um soldado e um cabo para fechar o
Supremo”? Faz apologia de “ruptu-
ras”? Comanda o “gabinete de ódio”?
Insiste em intervir em PF, Coaf, Recei-
ta? Desafia até protocolos universais

de saúde em atos contra o Legislativo e
o Judiciário?
O senso de dever e responsabilidade
uniu os desiguais do Supremo, pôs as
cúpulas do Congresso e de partidos de
barbas de molho, mexeu com o instin-
to democrático da mídia, reanimou ve-
lhas associações de belo passado e pre-
sente inerte e a até a discreta Socieda-
de Brasileira de Psiquiatria deu um gri-
to pela democracia. A Igreja Católica
anda mais quieta do que a história exi-
ge, mas as entidades judaicas acusam

indignação com o uso de Israel em vão.
Cresce a consciência do que se passa
no País, cresce a resistência.
As Forças Armadas não passam ao lar-
go disso. Nelas pululam dúvidas, discor-
dâncias, o temor de quebra de uma ima-
gem exemplar. Em nome do que? Do

falso dilema entre defender Bolsonaro
dos próprios fantasmas ou ser devora-
das por dragões comunistas imaginá-
rios que estão sob cada cama, ministé-
rio, instituição? Louve-se o silêncio dos
comandantes de Exército, Marinha e Ae-
ronáutica. O general Augusto Heleno
tentou consertar sua frase sobre “conse-
quências imprevisíveis” e o vice Hamil-
ton Mourão descartou golpes e aventu-
ras militares com desprezo, ironia.
No artigo “O militar surtou”, no Es-
tadão, Manuel Domingos Neto, ex-vi-
ce-presidente do CNPq e ex-presiden-
te da Associação Brasileira de Estudos
de Defesa (ABED), lembra a presença
decisiva das FA na engenharia, topo-
grafia, desenho, infraestrutura, artes,
ciência, história, matemática, veteriná-
ria, logística, aeronáutica. E provoca:
para hoje os militares se imiscuírem
com terraplanistas, criacionistas, ini-
migos da razão? Contra a ciência e as
pesquisas? Artigos assim servem de
boia para militares que querem distân-
cia de fake news e golpes.

O mais objetivamente grave da reu-
nião de 22 de abril foi o presidente
encarnar Hugo Chávez: “Eu quero to-
do mundo armado. Povo armado ja-
mais será escravizado”. Não é brava-
ta. Partiu de quem já condecorou e
empregou familiares de líder de milí-
cias, derrubou portarias do Exército
sobre armas e multiplicou munições
nas ruas, enquanto mete as polícias
no bolso. Como ficam as FA se milicia-
nos armados tentarem invadir o Su-
premo, as polícias lavarem as mãos e
o circo da democracia pegar fogo? É
melhor prevenir do que remediar.
Em 31/03/2019, no texto “Cons-
truir, não destruir”, descrevi o que
há de comum entre os projetos do
capitão Bolsonaro e do coronel Chá-
vez de alimentar as milícias e espan-
car Judiciário, Legislativo e mídia
para instalar suas crenças e delírios
de poder. O Brasil, porém, jamais
será uma Venezuela. Nem pela direi-
ta, nem pela esquerda. Há resistên-
cia e é à luz do dia.

E-MAIL: [email protected]
TWITTER: @ECANTANHEDE
ELIANE CANTANHÊDE ESCREVE ÀS TERÇAS E
SEXTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Há resistência, senso de dever


e responsabilidade. O Brasil


nunca será uma Venezuela


Bianca Gomes


Pedro Prata


Parte das medidas anuncia-


das pelo presidente Jair Bolso-


naro como forma de comba-


ter a pandemia do novo coro-


navírus está travada há pelo


menos 40 dias. A instalação


de 2 mil leitos em UTIs, a com-


pra de 3,3 mil respiradores na-


cionais e a contratação de 6


mil médicos para hospitais


universitários foram alguns


dos compromissos que o pre-


sidente assumiu publicamen-


te entre março e abril e que


não saíram do papel. Para ana-


listas, faltam liderança e arti-


culação política ao governo.


O Estadão fez um levantamen-


to de todas as promessas feitas


pelo presidente em pronuncia-


mentos na TV e em suas redes


sociais oficiais. Foram 17 compro-


missos sobre medidas de comba-


te à pandemia entre 17 de março e


21 de abril. Dessas, 41% não fo-


ram cumpridas integralmente


(mais informações nesta página).


Feita em 20 de março em sua


conta no Facebook, a promessa


de instalar 2 mil leitos de UTI no


País caminha a passos lentos.


Nos últimos dois meses, segun-


do o Ministério da Saúde, foram


alugados e distribuídos apenas


340 leitos de UTI volantes (de


instalação rápida). Enquanto is-


so, ao menos cinco Estados es-


tão com mais de 75% de seus lei-


tos para pacientes graves ocupa-


dos. O aumento de vagas pode-


ria ajudar Amazonas, Ceará, Pa-


rá, Pernambuco e São Paulo a


ganhar fôlego no combate à


doença. Segundo o Ministério


da Saúde, o último edital para


contratar vagas não recebeu pro-


postas por causa da “escassez


de respiradores no mercado”.


Uma nota técnica elaborada


por pesquisadores da Fiocruz


apontou que quase 6 em cada 10


municípios não possuem respi-


radores. No dia 21 de abril, quan-


do o País registrava 2.761 mor-
tes, Bolsonaro prometeu 3,3 mil
equipamentos. Até agora, com
o número de mortes dez vezes
maior, o Ministério da Saúde en-
tregou 1.437. A pasta possuía
contrato de mais de R$ 1 bilhão
com uma empresa chinesa para
compra de 15 mil respiradores,
mas, depois de levar calote, can-
celou a compra e passou a de-
pender da produção nacional.
O contrato com quatro em-
presas brasileiras prevê a distri-
buição de 14,1 mil respiradores.
Mas com prazo de entrega de
até 90 dias, os equipamentos po-
dem chegar até novembro,
quando, segundo as previsões
de cientistas, o pico da epide-
mia pode ter passado. O Minis-
tério da Saúde disse que não há
previsão de quando todos os res-
piradores serão entregues.
Outro compromisso que não
saiu completamente do papel
foi a aquisição de testes. Bolso-
naro prometeu a distribuição de
aproximadamente 10 milhões
de exames e até agora entregou
6,9 milhões, sendo 4,7 milhões
de testes rápidos (sorológicos)
e 2,1 de RT-PCR (biologia mole-
cular). Mesmo sendo um dos
países que menos testou a pró-
pria população, o Brasil segue co-
mo segundo lugar entre as na-
ções com mais casos de covid-
no mundo, atrás apenas dos Es-
tados Unidos. Com a subnotifi-
cação, especialistas acreditam
que o Brasil pode ser o próximo
epicentro da pandemia.
Falta ao País um plano de inte-
gração e coordenação entre go-
verno federal, Estados e municí-
pios, avalia a presidente da Asso-
ciação Brasileira de Saúde Coleti-
va (Abrasco) e professora de epi-
demiologia do Instituto de Medi-
cina Social da Universidade do Es-
tado do Rio de Janeiro, Gulnar
Azevedo. “A situação é grave.
Além da inexistência de um pla-
no integrado, há uma lentidão
em colocar em prática as ações”,
disse a professora. “Não adianta
receber o respirador em outubro,
os leitos para daqui dois meses.”
Além do não cumprimento
das promessas, as crises políti-
cas do governo têm atrapalha-
do a formulação de uma estraté-
gia de combate à doença, segun-
do analistas. Por divergências
em relação às medidas de isola-
mento social e ao uso da cloro-
quina, dois ministros da Saúde,
Luiz Henrique Mandetta e Nel-
son Teich, deixaram no período
da crise a pasta, que, em tese,
deveria formular a estratégia de
enfrentamento da covid-19.
Uma análise das medidas pro-

visórias editadas pelo governo
durante a crise do novo corona-
vírus mostra ritmo lento de apro-
vações. Sem uma base ainda con-
solidada no Congresso, Bolsona-
ro manteve a tendência de gover-
nar por meio de medidas provi-
sórias também em relação à pan-
demia. Das 49 propostas encami-
nhadas ao Congresso que ti-
nham relação com o assunto, 46
são MPs. Todas elas têm valida-
de de 60 dias e podem ser prorro-
gadas por mais dois meses, mas
perderão a validade se não fo-
rem aprovadas pelo Legislativo.

Congresso. Até o momento,
apenas três MPs passaram pelo
plenário e viraram leis: a regula-
mentação de emendas impositi-

vas para o combate à pandemia,
a lei que regula situação de emer-
gência para o combate à crise e a
norma que permite à Embratur
ajudar no processo de repatria-
ção de brasileiros no exterior.
Ao Estadão, o presidente da
Câmara dos Deputados, Rodri-
go Maia (DEM-RJ), afirmou
que está tentando avançar com
as MPs. “Esta semana devemos
votar cinco ou seis. Neste mo-
mento de pandemia cabe MP.”
Analistas políticos afirmaram
que o uso de MPs é esperado em
momentos de crise, mas aler-
tam para o risco de insegurança
jurídica causado por regras que
duram apenas 120 dias.
Para a professora Joyce Luz,
pesquisadora do Núcleo de Insti-

tuições Políticas e Eleições (Ni-
pe) do Centro Brasileiro de Análi-
se e Planejamento (Cebrap), fal-
ta diálogo entre Executivo e Le-
gislativo, e muitas das propostas
do governo estão sendo feitas
sob pressão dos próprios parla-
mentares. “O Congresso pressio-
nou o Executivo para enviar a
MP do auxílio emergencial. As-
sim como há uma pressão para a
edição de uma nova MP que facili-
te a abertura de crédito para os
microempreendedores. O gover-
no poderia, sim, estar fazendo
mais se tivesse uma coalização.”
Uma análise do conteúdo
das propostas enviadas ao
Congresso para mitigar os efei-
tos da pandemia mostra que
mais da metade diz respeito a

questões financeiras. “Há pou-
cas propostas partindo do pre-
sidente voltadas à proteção
mais clara da população, tanto
em termos de saúde como so-
cial e econômica”, afirmou a
professora da Fundação Getú-
lio Vargas (FGV) e coordena-
dora do Núcleo de Estudos da
Burocracia, Gabriela Lotta.
A reportagem procurou o Pa-
lácio do Planalto para esclareci-
mento sobre o não cumprimen-
to de algumas propostas do pre-
sidente Jair Bolsonaro, mas foi
informada que a demanda deve-
ria ser tratada com o Ministério
da Saúde. A pasta, que concen-
tra as medidas ainda não cum-
pridas, não havia respondido
até a conclusão desta edição.

lDesempenho


CONFIRA NA EDIÇÃO DE 5 DE JUNHO


Ford adota ações para a proteção da saúde dos clientes,


tanto no carro como nas concessionárias, incluindo


um serviço inédito de desinfecção do veículo


A boa notícia


“Há poucas propostas


partindo do presidente


voltadas à proteção mais


clara da população, tanto


em termos de saúde como


social e econômica.”


Gabriela Lotta


PROFESSORA DA FGV


“O governo poderia, sim,


estar fazendo mais se


tivesse uma coalização.”


Joyce Luz


PESQUISADORA DO CEBRAP


Não cumpridas


● O presidente Jair Bolsonaro fez 17 promessas sobre medidas para combater o coronavírus
em pronunciamentos na TV e em suas contas nas redes sociais

PROMESSAS


FONTES: MINISTÉRIO DA SAÚDE, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, MINISTÉRIO DA ECONOMIA, MINISTÉRIO DA CIDADANIA E MINISTÉRIO DA DEFESA INFOGRÁFICO/ESTADÃO

DATA ONDE PROMESSA RESPOSTA

Distribuição de
aproximadamente
10 milhões de
testes no total

Foram distribuídos para
diagnóstico da Covid-19, sendo
2,1 milhões RT-PCR (biologia
molecular) e 4,7 milhões de
testes rápidos (sorológicos)

37 são
médicos

22/MARFacebook


Instalação de leitos
de UTI no Brasil para
atendimento a
pacientes da Covid-

Foram locados e distribuídos
340 leitos de UTI de instalação
rápida em 11 Estados

20/MARFacebook


Envio de médicos
para reforço no
combate ao
coronavírus

Profissionais foram
contratados para atuar
no Amazonas.
500 mil profissionais de saúde
estão cadastrados na iniciativa
“O Brasil Conta Comigo”

20/MARFacebook


10
milhões

6,
milhões

300
mil

Respiradores
nacionais

Foram entregues
Contrato com empresas
prevê 14.

Não soube informar*


*MINISTÉRIO DA SAÚDE INFORMOU QUE AS INFORMAÇÕES SOBRE MATÉRIA-PRIMA PARA A PRODUÇÃO DA HIDROXICLOROQUINA DEVEM SER
APURADAS PELA INDÚSTRIA FARMACÊUTICA OU PELAS PRÓPRIAS EMPRESAS QUE DETÉM O REGISTRO DO FÁRMACO NO BRASIL

21/ABR

8/ABR

Facebook


Pronunciamento

3/ABR Facebook Será paga em junho


3.300 1.


5
mil

267


2
mil

6
mil

340


Contratação de
profissionais de
saúde para hospitais
universitários

Pagamento, por seis
meses, de bonificação
a profissionais de
saúde residentes

Recebimento de
matéria-prima da Índia
para a produção de
hidroxicloroquina

Contratados e
trabalhando

232 são médicos


28/MARFacebook


600
mil

Doação de testes
pela Petrobrás

Testes RT-PCR doados
pela Petrobrás para o
Ministério da Saúde

25/MARFacebook






R$ 667


Cumpridas


DATA PROMESSA

Conclusão do hospital de
campanha de Boa
Vista/Roraima

2
ABR

Aprovação do registro de
mais de 8 empresas para
testes rápidos

19
MAR

Isenção do pagamento da
conta de energia elétrica a
beneficiários da tarifa
social por três meses

8
ABR

Impostos de importação
zerados a 67 produtos

19
MAR

R$ 83,4 bilhões
destinados à população
mais vulnerável

17
MAR

3.391 médicos para atuar
em 1.202 municípios de
todos os estados e no DF

21
ABR

Produção de 1 milhão de
comprimidos de
cloroquina em
laboratórios químicos e
farmacêuticos militares

31
MAR

Entrada de mais de 1,
milhão no programa Bolsa
Família

31
MAR

Liberação de R$ 450 mi
para que instituições de
ensino possam comprar
produtos de higiene

20
MAR

Bolsonaro atrasa promessas contra covid


Compromissos assumidos em pronunciamentos e postagens empacam por falta de liderança e articulação com o Legislativo, dizem analistas

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