O Estado de São Paulo (2020-05-31)

(Antfer) #1

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A8 Política DOMINGO, 31 DE MAIO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


VERA


MAGALHÃES


D


a internet vieste, à internet
voltarás. Esse parece ser o
pesadelo que assola os
atuais líderes políticos brasileiros,
de todos os partidos, em todas as ins-
tâncias. Aqueles que os eleitores co-
locaram em postos de comando sem
saber que dali a poucos anos sería-
mos assolados por uma pandemia.
Do presidente ao vereador, os in-
cumbidos de tomar decisões que de-
finirão se sairemos antes ou depois
desse pesadelo, com mais ou menos
mortes e no fundo ou a meio cami-
nho dele no poço econômico, todos
pautam suas ações pela repercussão

nas redes sociais, por um cálculo mes-
quinho de perdas e ganhos políticos e
por pouca ou nenhuma ciência, o que
explica que estejamos no pior dos mun-
dos sob todos os ângulos.
A covardia é um dos atributos que
mais contribuem para a maneira tres-
loucada com que Jair Bolsonaro inves-
te contra as instituições, o bom senso e
a saúde pública. Trata-se de um For-
rest Gump, aquele personagem que
chegou lá por acaso. Estava passando
no momento exato da História em que
a corrupção desbragada cometida pelo
lulopetismo levou uma parcela da so-
ciedade a um surto de eleger qualquer

coisa menos um petista.
Bolsonaro sabe que se não fossem o
petrolão, as redes sociais e a facada que
levou em 6 de setembro de 2018 jamais
chegaria à Presidência da República com
seu clã da rachadinha, seus amigos mili-
cianos, seu passado desairoso no Exérci-
to e na Câmara, sua absoluta falta de
ideias sobre qualquer coisa, seu time de
ressentidos vingativos e seu saco de gato
ideológico que junta tudo de mais atrasa-
do que existe em termos de teorias da
conspiração disponíveis no mundo.

Por isso vê inimigos em toda parte e,
quando colocado diante de um desafio
concreto que o obriga a governar, não
tem a menor ideia de o que fazer. Aí faz
o que sabe: cria encrenca, cria fanta-
sias – que podem ser nióbio, pílula do
câncer, mamadeira de piroca ou cloro-

quina, ao sabor do momento – e sai
atrapalhando qualquer esforço de con-
duzir o navio para longe do iceberg.
Deputados, senadores, governado-
res e prefeitos, eleitos na mesma onda
de pane coletiva da razão, olham para
um presidente desgovernado e agem
entre a omissão e uma crítica medrosa.
Pior: muitos deles acabam cedendo
aos mesmos critérios anticientíficos e
irrazoáveis para lidar com a pandemia.
Não há outra explicação a não ser capitu-
lação à pressão do próprio Bolsonaro,
de empresários e de prefeitos para o go-
vernador de São Paulo, João Doria, que
vinha adotando um discurso de que pau-
taria suas ações pela ciência e por da-
dos, ter tomado uma medida tão desas-
trosa quanto anunciar a abertura da eco-
nomia a partir desta semana, inclusive
na capital, quando está morrendo mais
gente do que nunca e os hospitais vão
colapsar. Faltou coragem de persistir
na linha que ele mesmo traçou, e o des-
vio de rota pode custar muito mais caro.
E os presidentes da Câmara e do Sena-

do, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre?
São espectadores robustos de um es-
petáculo diário de diminuição do ta-
manho do Parlamento, enquanto se
limitam a notas de repúdio descola-
das da gravidade do momento.
Se os eleitos estão atados à pró-
pria covardia, resta o Judiciário, que
tem agido. Como o rol dos pusilâni-
mes inclui também o procurador-ge-
ral da República, Augusto Aras, que
dorme e acorda sonhando com uma
vaga no Supremo, cabe à corte ten-
tar impor freios à barbárie e ao con-
trassenso. O problema é que há
meios legítimos e outros questioná-
veis para que o tribunal exerça esse
seu papel de freios e contrapesos.
Diante dessa balbúrdia institucio-
nal, o melhor para o brasileiro é con-
tinuar em casa o quanto puder, por-
que se depender de seus homens pú-
blicos não há segurança para sair na
rua sem saber se vamos ser assola-
dos pelo vírus ou por um golpe de
Estado. Ou por ambos.

E-MAIL: [email protected]
TWITTER: @VERAMAGALHAES
POLITICA.ESTADAO.COM.BR/COLUNAS/VERA-MAGALHAES/

O que falta é coragem


Vinícius Valfré / BRASÍLIA


Na mira do Supremo Tribu-


nal Federal (STF), o “gabine-


te do ódio” instalado no Palá-


cio do Planalto se espalhou


pelos Estados. As células


mais avançadas desse grupo


ideológico – revelado pelo Es-


tadão em setembro do ano


passado – mantêm a militân-


cia digital inflamada e atuam


no Ceará, no Paraná, em Mi-


nas Gerais e em São Paulo.


Numa espécie de franquia, ca-


da núcleo regional conta com


assessores lotados em gabine-


tes da Câmara dos Deputa-


dos e em Assembleias Legisla-


tivas para movimentar pági-


nas de disseminação de fake


news e linchamentos virtuais


de adversários do governo.


Um dos núcleos mais estrutu-


rados, o “Endireita Fortaleza”


tem amigos até na assessoria es-


pecial do presidente Jair Bolso-


naro, no terceiro andar do Pla-


nalto. A célula não foi alvo da


operação da Polícia Federal na


quarta-feira passada, mas en-


trou na mira das investigações


pelo grau de engajamento nas


redes sociais e por ligações com


figuras influentes do governo.


O fundador do “Endireita


Fortaleza”, o cearense Guilher-


me Julian, trabalha no gabinete


do deputado federal Hélio Lo-


pes (PSL-RJ), o Hélio Negão, e


tem cargo comissionado com


remuneração mensal de R$ 6,


mil. Fiel escudeiro de Bolsona-


ro, o parlamentar ainda empre-


ga o cearense Henrique Rocha,


colega de Julian na mesma célu-


la. Na movimentação de pági-


nas e grupos de ataques a líderes


regionais, Julian e Rocha atuam


em parceria com assessores lota-


dos em gabinetes da Assembleia.


Cely Duarte e Manuela Melo tra-


balham para o deputado estadual


Delegado Cavalcante (PSL).


No Planalto, a célula cearense


conseguiu empregar José Ma-


theus Sales Gomes, que há sete
anos criou, em Fortaleza, a prin-
cipal página do grupo no Face-
book, a “Direita Vive 3.0”. Antes
batizada de Bolsonaro Zuero, a
página atualmente tem 620 mil
seguidores. Com salário de R$
13,6 mil, José Matheus foi nomea-
do assessor especial da Presidên-
cia, em janeiro de 2019, depois
de chamar a atenção do verea-
dor Carlos Bolsonaro (Republi-
canos-RJ) – filho do presidente e
comandante do “gabinete do
ódio” – pelo engajamento nas re-
des sociais. Também ligado à or-
ganização de Fortaleza, Mateus
Matos Diniz recebe R$ 10,3 mil
mensais como comissionado.
O servidor público Adriano
Duarte, atual presidente da “En-
direita Fortaleza”, é casado com
a assessora Cely Duarte. “Nosso
fundador (Julian) hoje está em
Brasília. Todo trabalho, as infor-
mações, a conexão das páginas es-
tá tudo com ele. É como se fosse
nosso moderador, está entenden-
do? Como é o fundador, ele é vita-
lício, para que mantenhamos a
identidade do grupo”, afirmou
Duarte, que é engenheiro civil.
À reportagem, o deputado Hé-
lio Lopes negou que seus funcio-
nários tenham atividade que não
seja relacionada com o mandato
parlamentar, mas evitou dizer
quais atribuições deu a Julian e a
Henrique. Questionado sobre
como conheceu os assessores e
por que resolveu contratá-los,
ele não respondeu. “Tenho uma
galera lá. Se for lembrar como é
que chamou, se por causa disso
ou daquilo...”, desconversou.
O modus operandi da célula
cearense é seguido por outros
núcleos do “gabinete do ódio”.
Os operadores mantêm páginas
e grupos para defender Bolsona-
ro, promover linchamentos vir-
tuais de adversários locais e in-
centivar a violação do lock-
down imposto pelo governador
do Ceará, Camilo Santana (PT),
como medida de combate ao

avanço do novo coronavírus.
Nos anúncios lançados nas re-
des para atrair interessados, o nú-
cleo apresenta conferências de
“estratégias de inteligência e pres-
são popular para a retomada do
poder pela sociedade civil organi-
zada” e também de “militância
profissional”. Prega, ainda, ações
contra as famílias do ex-ministro
Ciro Gomes e de seu irmão, o se-
nador Cid Gomes (PDT), adver-
sários de Bolsonaro.
“Há a clara reprodução, no
Ceará, do modus operandi do ga-

binete do ódio instalado na Capi-
tal Federal e comandado por
um dos filhos do presidente Jair
Bolsonaro. Baseia-se na constru-
ção e disparo de notícias menti-
rosas e na tentativa de destruir
reputações e demonizar a políti-
ca”, disse Ciro ao Estadão.
No último dia 20, o movimen-
to saiu das páginas de Facebook
e dos grupos de WhatsApp e foi
às ruas em carreata contra o de-
creto estadual que impôs o con-
finamento total na capital cea-
rense. O Estado é o terceiro em
número de mortes provocadas
pelo novo coronavírus, mas alia-
dos de Bolsonaro classificam co-
mo “ditatorial” a medida adota-
da pelo governo petista.
Para furar o isolamento, bolso-
naristas alegaram que eram da
“imprensa alternativa” e estavam
nas ruas para fazer uma reporta-
gem. A desculpa não convenceu a
polícia e 25 pessoas foram parar
na delegacia. Entre os envolvidos
no tumulto estavam Cely Duarte
e Manuela Melo, as duas funcioná-
rias parlamentares. Elas empres-
tam a imagem para vídeos, textos
e montagens que são distribuídos
em uma série de páginas e grupos
administrados pelo movimento.
O papel de Cely e Manuela,
segundo o deputado Delegado

Cavalcante, que as emprega, é
prestar a ele o serviço de “asses-
soria sobre conservadorismo”.
Mesmo não tendo carga horária
específica na Assembleia, a du-
pla trabalha por horas a fio. “A
gente trabalha de segunda a se-
gunda. Se fosse pagar hora ex-
tra para as meninas, não tinha
como”, disse o deputado.
Outro destacado integrante da
rede cearense com acesso ao Pla-
nalto é Alex Melo, ex-assessor de
Delegado Cavalcante. Entre ju-
nho e novembro de 2019, Melo es-
teve nove vezes em agendas no
terceiro andar do Planalto, onde
funciona o “gabinete do ódio”.
Em seus perfis, ele se exibe circu-
lando em áreas restritas da sede
do governo. “Mais BSB. Contribu-
indo com o governo e desarman-
do bombas”, escreveu Alex como
legenda de uma selfie tirada em
frente ao Congresso, em outubro.
Procurado, ele não se manifestou.
Os alvos dos ataques costu-
mam acompanhar a agenda de
frituras e ofensivas definida pe-
los rumos do governo federal.
Em outubro, por exemplo, o ví-
deo compartilhado por Bolsona-
ro, comparando o Supremo Tri-
bunal Federal a hienas, virali-
zou. Já em novembro, quando o
ex-presidente Luiz Inácio Lula

da Silva deixou a prisão, o grupo
postou um vídeo antigo de Dias
Toffoli – que hoje comanda o
STF –, como se o ministro esti-
vesse comemorando a soltura
do “patrão”. Mais recentemente
foi a vez de Sérgio Moro – o ex-ti-
tular da Justiça que foi juiz da La-
va Jato – se tornar personagem
de montagens depreciativas.

Origem. O funcionamento da re-
de bolsonarista foi relatado pela
primeira vez em reportagem do
Estadão. Em 25 de fevereiro de
2017, quase dois anos antes de
Bolsonaro assumir a Presidência,
o jornal revelou que o grupo po-
lítico ligado a ele, então deputado
federal do PSC, esteve na linha de
frente da comunicação e da lo-
gística do motim que parou a PM
do Espírito Santo e levou pânico
à população daquele Estado.
Em 19 de setembro do ano
passado, o Estadão registrou
pela primeira vez também o ter-
mo “gabinete do ódio” e o fun-
cionamento do grupo, liderado
por Carlos Bolsonaro. A atua-
ção do “gabinete do ódio” está
sob investigação do inquérito
das fake news tocado pelo STF,
da CPI das Fake News no Con-
gresso e na mira do Tribunal de
Contas da União (TCU).

“Há a clara reprodução, no
Ceará, do modus operandi
do gabinete do ódio
instalado na Capital Federal
e comandado por um dos
filhos do presidente Jair
Bolsonaro. Baseia-se na
construção e disparo de
notícias mentirosas e
na tentativa de
destruir
reputações
e demonizar
a política.”
Ciro Gomes
EX-MINISTRO

Safra de líderes políticos


tíbios e pautados pelas redes


sociais agrava nosso pesadelo


‘Gabinete do


ódio’ do CE


mira grupo


de Ciro


l ‘Modus operandi’


Rafael Moraes Moura / BRASÍLIA


Relator do inquérito que investi-


ga ameaças, ofensas e fake news


contra integrantes do Supremo


Tribunal Federal, o ministro Ale-


xandre de Moraes apontou indí-


cios da prática de cinco crimes pe-


la ativista bolsonarista Sara Win-


ter e alegou que o Poder Judiciá-


rio não pode “silenciar diante de


inúmeras ofensas gravíssimas”.


O ministro pediu à Procura-
doria-Geral da República para
analisar um vídeo da ativista e
tomar as providências que en-
tender cabíveis. Winter foi um
dos alvos de uma operação de
busca e apreensão determinada
pelo ministro na quarta-feira
passada, no inquérito das fake
news. Após a operação, a ativis-
ta divulgou nas redes sociais um
vídeo com ofensas a Moraes e

aos demais ministros da Corte.
O vídeo foi encaminhado por
Moraes ao procurador-geral da
República, Augusto Aras, que o
enviou ao Ministério Público Fe-
deral do DF. O caso está com o
procurador Frederick Lustosa
de Melo, que é pressionado por
colegas a pedir logo à Justiça Fe-
deral a imposição de medidas
cautelares contra a ativista.
Ela hostilizou o ministro, dis-

se que gostaria de trocar soco
com ele e ameaçou: “Você me
aguarde, Alexandre de Moraes.
O senhor nunca mais vai ter paz
na vida!”
Ao analisar a gravação, Mo-
raes apontou indícios de cinco
crimes: injúria; ameaça; tentar
impedir, com emprego de vio-
lência ou grave ameaça, o livre
exercício de qualquer dos Pode-
res da União ou dos Estados; in-

citar a subversão da ordem po-
lítica ou social; e caluniar ou difa-
mar o presidente da República,
o do Senado Federal, o da Câma-
ra dos Deputados ou o do Supre-
mo Tribunal Federal, imputan-
do-lhes fato definido como cri-
me ou fato ofensivo à reputação.
Os três últimos estão previstos
na lei que define os crimes con-
tra a segurança nacional.
“A despeito de se garantir a ple-

na liberdade de expressão, em
certos casos, como ocorreu com
as manifestações de Sara Fernan-
da Giromini, por meio das redes
sociais, o Poder Judiciário não
pode silenciar diante de inúme-
ras ofensas gravíssimas, inclusi-
ve contra a integridade física de
ministros do Supremo Tribunal
Federal, especialmente quando
tais ofensas têm origem em pes-
soa (principal porta-voz do gru-
po 300 do Brasil) que já admitiu
a existência de armamento en-
tre os membros do grupo radi-
cal”, observou Moraes.

Parlamentares têm


conexões com o


Palácio do Planalto


TABA BENEDICTO / ESTADAO

AL-CE-15/4/

Grupo ideológico do Planalto, alvo de inquérito


no Supremo, conta com ‘filiais’ nos Estados


‘Conservadorismo’. Delegado Cavalcante diz que servidoras do gabinete prestam ‘assessoria’


Judiciário não pode silenciar diante de ofensas, diz Moraes


lO deputado Delegado Caval-
cante (PSL) está na mira do Mi-
nistério Público do Ceará em
uma investigação sobre uso de
funcionários, no horário do expe-
diente, para colher assinaturas
endereçadas ao Aliança pelo
Brasil, partido que o presidente
Jair Bolsonaro quer tirar do pa-
pel. A 24ª Promotoria de Justi-
ça de Fortaleza informou que
também deverá chamar o depu-
tado André Fernandes (PSL) pa-
ra prestar esclarecimentos.
Fernandes é um fenômeno da
política e da internet. Eleito de-
putado aos 20 anos, ele se tor-
nou célebre no YouTube, plata-
forma na qual tentou, primeiro,
enveredar pelo ramo do humor.
Ingressou na política e se tor-
nou um dos mais influentes bol-
sonaristas na internet. No início
deste mês, ele comeu um ca-
chorro-quente com o presiden-
te, no Palácio da Alvorada. O
cearense também tem canal
aberto com o deputado Eduardo
Bolsonaro (PSL-SP).
O Estadão procurou os gabine-
tes dos deputados. A equipe de
Fernandes pediu os questiona-
mentos por escrito, mas não
respondeu. Delegado Cavalcan-
te negou as acusações de uso
indevido dos servidores. / V.V.
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