O Estado de São Paulo (2020-06-06)

(Antfer) #1

A10 Política SÁBADO, 6 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


JOÃO GABRIEL


DE LIMA


S


oa a música tenebrosa de
duas notas: mi-fá. Mi-fá. Mi-
fá-mi-fá. Mi-fá-mi-fá-mi-fá-
mi-fá... O sol ilumina as águas, e
elas se tingem de sangue.
Quer uma dica de filme para a
quarentena? Tubarão, velho clássi-
co de Steven Spielberg (tem no
Netflix). Toda vez que o tema de
John Williams toca, o espectador
se arrepia. É o prefixo do oceano
vermelho. O tubarão não aparece,
mas os personagens sentem sua
presença na carne. Ou melhor,
seus dentes.
Na maior parte do filme, o peixe

é um inimigo invisível. Como o novo
coronavírus.
O paralelo entre a ficção de ontem
e a realidade de hoje se justifica. Prin-
cipalmente quando se revê (tem no
YouTube) uma das cenas mais famo-
sas do filme: o diálogo entre Larry
Vaughn, prefeito da cidadezinha de
Amity, e o cientista Matt Hopper. O
mundo da política e o mundo do co-
nhecimento. Não é bem um diálogo –
é briga mesmo.
Depois dos primeiros ataques do tu-
barão, Hopper sugere ao prefeito que
feche as praias, para evitar novas víti-
mas: “Só há dois jeitos de combater o

tubarão. Matá-lo ou cortar seu supri-
mento de alimentos, as pessoas”.
Vaughn, em seu paletó com âncoras
estilizadas, teme pela fuga dos turis-
tas em plena temporada de verão.
Um outdoor mostra uma banhista
pegando jacaré nas praias ensolara-
das de Amity. Um gaiato desenhou
um grito de pavor em seus lábios, e
uma nadadeira de tubarão atrás dela.
Vaughn manda prender o autor da in-
tervenção por depredar patrimônio
público.

A interação – nem sempre pacífica


  • entre os mundos da política e do
    conhecimento ficou evidente em tem-
    pos de pandemia. E o mundo do co-
    nhecimento, tal qual no enredo de Tu-
    barão, ganhou prestígio.
    Um estudo do Shorenstein Center


da Universidade Harvard mostrou
que a confiança dos americanos em
cientistas é maior do que em autorida-
des federais ou na mídia.
Outra pesquisa, feita no Brasil com
usuários de redes sociais pelo Centro
de Estudos Estratégicos da Fiocruz,
apontou um índice alto de comparti-
lhamento de mensagens científicas.
Um terceiro levantamento, feito
pela consultoria Idea Big Data, mos-
trou que o interesse dos brasileiros
em ouvir opiniões de especialistas au-
mentou em 76% em tempos de co-
vid-19.
A conversa entre política e conheci-
mento não se limita aos momentos
em que um vírus espalha mortes pelo
planeta. Ela já vem de muito tempo,
com o uso crescente de bancos de da-
dos no desenho de políticas públicas.
Isso não significa que a política seja
uma atividade meramente técnica.
Em tese, os políticos tomam suas
decisões baseados na vontade dos ci-
dadãos – para isso são eleitos. Não é

possível, no entanto, ignorar os fa-
tos na hora de tomar tais decisões.
Quem vai fazer um ajuste fiscal pre-
cisa saber o tamanho da dívida.
Quem quer combater a pobreza
tem de saber o número de cidadãos
vulneráveis e onde eles estão. São
as tais “evidências”, palavra da mo-
da na tribo dos acadêmicos.
Esta coluna que começa hoje ver-
sará principalmente sobre isso: so-
luções práticas para problemas
concretos, e o debate – baseado em
evidências – em torno de tais pro-
blemas. Sempre tendo em mente
que, nas democracias, tais solu-
ções passam pela política. A boa
política.
Em Tubarão, o prefeito Vaughn
acaba sozinho e sem votos, traga-
do pelo oceano vermelho da políti-
ca. Será este o destino dos gover-
nantes que ignoram as evidências
em suas decisões?
Mi-fá. Mi-fá. Mi-fá-mi-fá. Mi-fá-
mi-fá-mi-fá-mi-fá...

Pedro Venceslau
Bruno Ribeiro


A Avenida Paulista deve rece-
ber três manifestações de rua
em um espaço de quatro horas
amanhã. Após duas reuniões,
não houve, ontem, acordo en-
tre Polícia Militar (PM), Minis-
tério Público Estadual (MP),
manifestantes que defendem o
governo do presidente Jair Bol-
sonaro, movimentos antirracis-
tas e opositores do mandatário,
como representantes de torci-
das de futebol e integrantes da
Frente Povo Sem Medo.
Apesar de não haver acordo,
grupos antirracistas e contra
Bolsonaro negociavam, até a
conclusão desta edição, unifi-
car seus atos e tomar medidas
para evitar que se encontrem
com os defensores do presiden-


te, segundo líderes desses gru-
pos. Uma das propostas da
Frente Povo Sem Medo, segun-
do o professor Guilherme
Simões, é fazer uma caminhada
do Masp até a Praça Roosevelt,
passando pela Rua da Consola-
ção. Com isso, eles evitariam
contato com o grupo que defen-
de o governo federal.
No domingo passado, a PM
usou bombas de gás lacrimogê-
neo para dispersar protesto de
grupos de torcedores que se de-
claram antifascistas na Avenida
Paulista. Os torcedores disse-
ram que a confusão começou
porque um bolsonarista se infil-
trou na mobilização.
Os apoiadores de Bolsonaro
pretendem se reunir em frente
à Fiesp às 11h. Inicialmente, o
movimento negro pretendia co-
meçar o ato às 10h no Masp. O
grupo pode se juntar à manifes-
tação das 14h, no mesmo lugar,
que reuniria torcedores de fute-
bol e movimentos sociais. “Não
teve consenso”, disse Simões.
“Nosso intuito é fazer um pro-
testo de forma pacífica”.
Simões afirmou ao Estadão

que, além da caminhada, o ato
terá profissionais da Saúde, cu-
jo trabalho será garantir que as
pessoas mantenham uma dis-
tância de um metro e meio en-
tre si, e distribuição de másca-
ras e de álcool em gel.
Na segunda-feira, o governa-
dor João Doria (PSDB) havia de-
terminado que atos de grupos
opostos não poderiam ocorrer
na mesma data, horário e local
para “assegurar o direito às ma-
nifestações e preservar a segu-
rança dos participantes”. De
acordo com pessoas que estive-
ram na reunião, o acordo não
foi possível porque nenhum
dos grupos aceitou as propos-
tas do governo paulista. O obje-
tivo das reuniões, segundo o se-

cretário da Segurança Pública,
João Campos, era chegar a um
acordo para que um dos grupos
fizesse seu ato no sábado ou em
outro lugar da cidade.
Oficialmente, a PM diz que
vai tentar negociar até o último
minuto para evitar que grupos
antagônicos se reúnam no mes-
mo lugar no fim de semana.
Mas a corporação já prepara um
reforço no policiamento na ave-
nida Paulista. “Nessas manifes-
tações, usaremos as informa-
ções que temos nos nosso plane-
jamento para identificar e agir
contra pessoas ou grupos que
tentem impedir o uso deste di-
reito constitucional (de manifes-
tação)”, disse o secretário, on-
tem, durante coletiva de im-
prensa ao lado de Doria. Ele afir-
mou que a PM deverá fazer re-
vistas em pessoas que querem
participar do ato. “(Faremos) re-
vistas criteriosas para evitar
que as pessoas possam levar ob-
jetos que possam causar dano
em outras pessoas.”

Manifestos. Grupos que divul-
garam manifestos pró-demo-
cracia ao longo da semana não
recomendam a presença de
apoiadores nos atos marcados
para domingo. Há o temor por
parte desses grupos, criados
por entidades da sociedade ci-
vil e personalidades, que a mani-

festação termine em briga gene-
ralizada, como ocorreu domin-
go passado, o que daria uma nar-
rativa para o governo Jair Bolso-
naro condenar seus adversários


  • o presidente já classificou os
    manifestantes contrários a seu
    governo de “idiotas, marginais
    e viciados”. Além disso, os gru-
    pos citam o risco de contamina-
    ção em meio à pandemia do no-
    vo coronavírus.
    Para o sociólogo Marcelo Is-
    sa, coordenador do Transparên-
    cia Partidária, uma das 130 orga-
    nizações que fazem parte do
    Pacto pela Democracia, o pon-
    to principal é a questão sanitá-
    ria e a violência por parte dos
    bolsonaristas nas ruas. “O que
    me preocupa é a atuação de ci-
    vis armados e a reação dos que
    apoiam Bolsonaro”, afirmou.
    Ele defende que durante a
    pandemia as manifestações
    contra o governo ocorram em
    formatos alternativos, como pa-
    nelaços e panos pretos nas jane-
    las das casas. “Mas não conde-
    no quem sai às ruas.”
    Criador do Somos 70%, o en-
    genheiro Eduardo Moreira dis-
    se que “respeita e compreende”
    quem for para a Paulista no do-
    mingo. “Não recomendo que se
    juntem ao ato pelo risco sanitá-
    rio, mas respeito e recomendo
    as pessoas que cruzaram essa li-
    nha”, afirmou.


OAB-SP lança


manifesto com


apoio de Doria


Tânia Monteiro / BRASÍLIA
Daniel Weterman
ENVIADO ESPECIAL
ÁGUAS LINDAS DE GOIÁS


Com o temor de que atos pre-
vistos para amanhã se trans-
formem em grandes movimen-
tos de rua contra seu governo,
o presidente Jair Bolsonaro in-
tensificou ontem as críticas
aos manifestantes e discute
até mesmo convocar a Força
Nacional de Segurança Públi-
ca para atuar nos protestos.
Ao inaugurar um hospital de
campanha em Águas Lindas de
Goiás, cidade próxima a Brasília,
Bolsonaro chamou novamente
de “marginais” integrantes de gru-


pos contrários ao seu governo.
O presidente também voltou
a pedir que seus apoiadores não
participem desses atos. “Que o
outro lado que luta pela democra-
cia, que quer o governo funcio-
nando e quer um Brasil melhor e
preza por sua liberdade, que não
compareça às ruas nesses dias pa-
ra que (...) a Força de Segurança,
nossas forças estaduais, bem co-
mo a nossa (Polícia) Federal pos-
sam fazer seu devido trabalho,
(se) porventura esses marginais
extrapolarem os limites da lei”,
afirmou Bolsonaro.
Como mostrou o Estadão, o
Palácio do Planalto tem receio
de que manifestações em defe-
sa da democracia e contra o go-

verno cresçam, aumentando a
pressão pelo impeachment do
presidente.
O governador do Distrito Fe-
deral, Ibaneis Rocha (MDB),
disse que não vai solicitar a For-
ça Nacional para acompanhar
os atos de amanhã. “O principal
objetivo do governo do Distrito
Federal, em relação às manifes-
tações públicas programadas
para o próximo domingo, dia 7,
na Esplanada dos Ministérios, é
garantir a segurança das pes-
soas e a integridade do patrimô-
nio público”, afirmou o gover-
no, em nota. “As forças de segu-
rança do Distrito Federal, as-
sim como outros órgãos do
GDF, estarão nos locais dos

eventos com o efetivo necessá-
rio para garantir a livre manifes-
tação e a ordem.”
Ao criticar os protestos, Bol-
sonaro também tenta criminali-
zar os movimentos. Nos últi-
mos dias, ele tem classificado
os manifestantes contra o go-
verno não apenas de “margi-
nais”, mas também de “terroris-
tas” e “viciados”.
Se a presença da Força Nacio-
nal for autorizada, não será a pri-
meira vez que esse contingente
vai atuar sob a gestão Bolsonaro.
Em maio do ano passado, por
exemplo, os agentes acompanha-
ram atos na Esplanada. A função
da Força neste tipo de missão é a
de proteção do patrimônio públi-

co, para evitar que haja depreda-
ções de prédios de ministérios.
Bolsonaro recebeu ontem
um grupo de líderes evangélicos
que oraram, no Planalto, contra
a “baderna” e o “quebra-que-
bra” e pregaram a harmonia en-

tre os Poderes. Sem citar os pedi-
dos de impeachment para afas-
tar Bolsonaro, os religiosos se
manifestaram contra a “convul-
são social e institucional” e dis-
seram que é Deus quem escolhe
e retira as autoridades públicas.
“O povo brasileiro é um povo
pacífico, não é povo de quebra-
quebra, nem de baderna. A mar-
ca do povo brasileiro é o povo
do verde e amarelo”, disse o pas-
tor Silas Malafaia, da Assem-
bleia de Deus Vitória em Cris-
to, um antigo aliado e apoiador
do presidente. “Esse País não
vai ser Venezuela, não vai ser
destruído por ninguém. Esse
País não vai falir.” /COLABOROU
FELIPE FRAZÃO

FOTOS GABRIELA BILÓ/ESTADÃO

lNegociação

Sem acordo, Av. Paulista deve ter


três manifestações no domingo


Fernanda Boldrin

A seção de São Paulo da Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB-
SP) lançou ontem o “Movimen-
to Democracia Sempre”. O
anúncio, feito virtualmente pe-
lo presidente da OAB-SP, Caio
Augusto Silva dos Santos, rece-
beu apoio do governador de São
Paulo, João Doria (PSDB), do
presidente da Câmara Munici-
pal de São Paulo, Eduardo Tu-
ma (PSDB), e de representan-
tes do Ministério Público Esta-
dual e do Tribunal de Contas Es-
tadual, entre outros.
“Estaremos ao lado da OAB,
ao lado de todas as instituições
e brasileiros que, aqui de São
Paulo, dirão um não a qualquer
movimento autoritário ou qual-
quer movimento que busque
um regime ditatorial no País”,
afirmou Doria. Ele também cri-
ticou a atuação de apoiadores
do presidente Jair Bolsonaro
em manifestações recentes.
Eduardo Tuma, que represen-
tou o prefeito Bruno Covas
(PSDB), também endossou a
iniciativa. “A Câmara Munici-
pal se sente honrada de partici-
par na defesa da democracia”,
afirmou o vereador, que tam-
bém se manifestou contra a
prorrogação de mandatos e o
adiamento das eleições munici-
pais de 2020.
Em texto lido durante a trans-
missão, a OAB-SP afirmou que
“o Movimento Democracia
Sempre será um observatório,
um escudo aos retrocessos civi-
lizatórios e um núcleo de defe-
sa contra todas as ameaças anti-
democráticas, por meio do qual
serão reiteradamente reafirma-
dos o dever e a responsabilida-
de de defesa das mensagens
#DemocraciaSempre e #Autori-
tarismoNão”.
A OAB-SP elabora um docu-
mento para formalizar o movi-
mento. O lançamento acontece
no momento em que uma onda
de manifestos assinados por
personalidades brasileiras de di-
ferentes setores da sociedade
em defesa da democracia e em
oposição ao presidente Jair Bol-
sonaro ganha volume.

l ‘Trabalho’

ADRIANO MACHADO/REUTERS

O mundo do conhecimento, tal
qual no enredo de ‘Tubarão’,
ganhou prestígio na pandemia

Na praia com o tubarão


“Não teve consenso após as
duas reuniões com os
outros grupos. Nosso
intuito é fazer um protesto
de forma pacífica.”
Guilherme Simões
INTEGRANTE DA FRENTE POVO SEM MEDO

Movimentos disseram


que pretendem unificar


atos e fazer caminhada


em direção oposta aos


grupos opostos


Tropeço


e queda


em chão


de terra


O presidente
Jair Bolsonaro
tropeçou e caiu
de joelhos no
chão de terra
ao chegar em
Águas Lindas
de Goiás, onde
participou de
inauguração de
hospital de
campanha. Ele
levantou com
ajuda de asses-
sor e voltou a
caminhar nor-
malmente.

Bolsonaro cogita Força Nacional em ato


“(...) a Força de Segurança,
nossas forças estaduais,
possam fazer seu
devido trabalho (se)
porventura esses marginais
extrapolarem os
limites da lei.”
Jair Bolsonaro
PRESIDENTE

Presidente volta a chamar manifestantes contrários a seu governo de ‘marginais’ e discute até o uso de tropa federal amanhã em protesto

Free download pdf