O Estado de São Paulo (2020-06-06)

(Antfer) #1

A12 Política SÁBADO, 6 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


WILTON JUNIOR/ESTADÃO
Fernando Gabeira, jornalista


ENTREVISTA


Wilson Tosta / RIO


Um ano atrás, o jornalista Fer-
nando Gabeira tinha críticas
ao presidente Jair Bolsonaro,
mas avaliava que as institui-
ções eram suficientes para con-
tê-lo, como expressou em ju-
nho de 2019 em entrevista ao
Estadão, onde é colunista.
Não pensa mais assim. A prega-
ção em favor de armar a popu-
lação, seus movimentos para
atrair as Forças Armadas e sua
aproximação das polícias mili-
tares foram decisivos para o
jornalista mudar de ideia. Para
ele, a ação do presidente suge-
re o espectro de uma guerra ci-
vil ou um golpe de Estado,
sem, necessariamente, partici-
pação direta das Forças.“Mui-
to possivelmente ele pode es-
tar articulando um golpe usan-
do polícias militares e neutrali-
zando as Forças Armadas”, dis-
se Gabeira, em nova conversa
com o Estadão, anteontem.


lHá quase um ano, o senhor fez
críticas ao governo Bolsonaro,
mas se mostrou confiante nas
instituições. Recentemente, o
senhor passou a defender que os
brasileiros se mobilizem para
barrar um possível golpe do pre-
sidente. O que aconteceu?
O primeiro aspecto da minha
confiança eram os contrape-
sos democráticos, que esta-
vam baseados no Congresso e
no Supremo. Esses contrape-
sos continuam tentando fazer
frente a esse processo. Mas há
sobre eles, hoje, uma carga
muito intensa, a partir do bol-
sonarismo. As manifestações
foram claramente dirigidas ao


fechamento do Congresso e
do Supremo. Então, o que alte-
rou é que Bolsonaro não está
aceitando muito bem a presen-
ça desses contrapesos, pelo
contrário, está tentando neu-
tralizar alguns deles. Esse é
um fato. Outro é a relação com
as Forças Armadas, que sem-
pre (desde a redemocratização)
tiveram, aparentemente, um
papel democrático, e funciona-
ram. E as Forças Armadas fo-
ram muito envolvidas pelo Bol-
sonaro. Não só pelo trabalho
orçamentário, mas pela visão
da reforma da Previdência dos
militares, pela entrada de 3 mil
militares no governo, enten-
de? E sobretudo agora pela
aliança que fizeram na Saúde.
Praticamente, (as Forças) es-
tão atraindo, participando ou
partilhando uma política que
pode trazer para elas uma re-
percussão nefasta. Então, isso
tudo alterou muito o quadro.

lRecentemente, algum fato ace-
lerou a mudança de opinião?
Aquela reunião (de 22 de abril)
apresentou fatos alarmantes.
O mais importante foi a defesa
pelo Bolsonaro do uso de ar-
mas. Se você lembrar a campa-
nha, Bolsonaro tinha como
proposta de armamento da po-
pulação a necessidade de se de-
fender da violência urbana.
Mas naquela reunião ficou evi-
dente que ele tem uma visão
de armas para a expressão da
sua visão política. A pessoa ar-
mada teria condições de se ex-
pressar politicamente através
das armas. Inclusive, sugeriu
que isso fosse feito contra a
quarentena. Quatro generais
do Exército estavam presentes
e não moveram uma palha,
nem houve expressão de sur-
presa. Isso é absolutamente no-
vo: os generais ouvindo a ideia
de armar a população para a
sua expressão política, sem te-
rem algum tipo de reação.

lNa campanha de 2018, muita
gente dizia “Bolsonaro só fala
essas coisas horríveis para ga-
nhar voto”. Ou: “Ele já pensou
assim, não pensa mais...”
Bolsonaro, na Câmara dos De-
putados, tinha um tática de po-
pularização. Ele utilizava vá-
rios temas, como direitos hu-
manos, como a questão das
mulheres, da homossexualida-
de... Ele usava isso para se po-
pularizar. A tática era pegar al-
gumas pessoas conhecidas,
por exemplo Maria do Rosário,
Jean Wyllys, e fazer diante das
câmeras alguns debates que
sustentariam o seu público.
Mas ele não tinha muito ideia
de uma proposta para o Brasil.
Tinha um saudosismo do go-

verno militar, mas que não ti-
nha correspondência naquele
momento com a própria situa-
ção das Forças Armadas. Ao
chegar ao governo, ele faz uma
política de sedução das Forças
Armadas. Ele está usando as
Forças Armadas, de forma
bem clara, como um elemento
de intimidação. E as Forças Ar-
madas, pura e simplesmente,
estão se deixando usar. E isso
não é o único perigo dele. Ele
tem uma boa penetração nas
polícias militares. Então, mui-
to possivelmente, ele pode es-
tar articulando um golpe usan-
do polícias militares e neutrali-
zando as Forças Armadas. Ele
pode estar até em um ponto
em que não precise usar as For-
ças Armadas. Basta que elas fi-
quem neutras e deixem a Polí-
cia Militar atuar.

lQuando começou o governo,
havia expectativa de que os mili-
tares seriam um fator moderador
dos impulsos do Bolsonaro.
Olha, aconteceu o seguinte: ao
invés de os militares se torna-
rem moderadores do Bolsona-
ro, ele se tornou um fator de ra-
dicalização dos militares. O ge-
neral Augusto Heleno tem se
tornado um radical, cada vez
maior, dentro do governo. É
claro que, no caso dele, pesou
aquela prisão, na Espanha, de
um oficial (na verdade, o sargen-
to Manoel Silva Rodrigues) da
Aeronáutica com cocaína. E

ele, como o homem do GSI, foi
considerado responsável pelo
furo de segurança pelo Carlos
Bolsonaro. Depois disso ele fi-
cou assustado e começou a se
unir a este grupo ideológico.
Outros generais, por exemplo,
o Braga Netto (chefe da Casa Ci-
vil) tem até uma capacidade de
organização boa, mas não tem
condições de segurar o Bolso-
naro. Da mesma maneira, o (vi-
ce-presidente Hamilton) Mou-
rão não tem esse papel. O Mou-
rão sempre foi considerado pe-
los próximos ao Bolsonaro co-
mo um adversário em poten-
cial. Então, ele se recolheu. O
general (Luiz Eduardo) Ramos
(chefe da Secretaria de Gover-
no), que deu entrevista dizen-
do que são todos democratas e
que é uma ofensa às Forças Ar-
madas pensar que elas podem
estar sendo cúmplices de um
golpe, ele também é o cara que
está fazendo a política do Bol-
sonaro. Então, esses generais
viram que a proposta do Bolso-
naro é a guerra civil. Eles sa-
bem muito bem que Bolsonaro
é um homem que ganha as elei-
ções e denuncia as eleições co-
mo fraudadas. Então, com as
armas na mão, o que vai que-
rer fazer? Vai querer se rebe-
lar. Eles sabem disso.

lO que explica a reação de Bol-
sonaro à pandemia?
O Bolsonaro pensa muito cur-
to. Ele pensou: ‘O que isso po-

de fazer comigo? O que isso po-
de representar para o meu go-
verno? Então, uma crise econô-
mica, o desemprego, vão atra-
palhar minha gestão. Então,
vou negar essa epidemia’. Ele
negou a epidemia porque acha-
va que era contrária a ele.

lComo o senhor avalia a partici-
pação de Bolsonaro nas manifes-
tações que pedem o fechamento
do Supremo e do Congresso?
Qualquer democrata, diante
de uma manifestação desse ti-
po, passa longe. Ele (Bolsona-
ro) vai lá saudar os manifestan-
tes. Meio que demonstra, com
isso, que tem uma simpatia pe-
la causa deles. Ele tem alguma
simpatia pela causa do fecha-
mento do Congresso e do fe-
chamento do Supremo.

lBolsonaro pode ser levado a
respeitar as leis?
Acho que é evidente agora que
Bolsonaro está querendo ar-
mar o povo para uma expres-
são política, para que o povo
tome uma posição política que
eles querem. Está querendo
criar milícias armadas. E um
homem que quer armar parte
da população está preparando
uma guerra civil. Naquele mo-
mento, ficou bastante claro pa-
ra mim qual é o desígnio dele,
qual é a posição. Então, acho
que tem que trabalhar para, ou
neutralizá-lo visando ir até
2022, ou afastá-lo antes disso.

Patrik Camporez / BRASÍLIA


A Justiça Federal intimou o pre-
sidente Jair Bolsonaro, por
meio da Advocacia-Geral da
União (AGU), a dar explicações
sobre a publicação de uma por-
taria que aumentou em três ve-
zes a quantidade de munições
que pode ser comprada por ca-
da pessoa. A ação foi aberta
após o Estadão revelar que a


norma foi fundamentada em pa-
recer do general de brigada Eu-
gênio Pacelli Vieira Mota, que já
havia sido exonerado e não ti-
nha mais função no governo. A
portaria elevou de 200 para 600
o número de projéteis permiti-
dos anualmente por registro de
arma de pessoa física.
O despacho da 25.ª Vara Cível
Federal de São Paulo atende a
um pedido do deputado federal
Ivan Valente (PSOL-SP). Na
ação, o parlamentar também co-
bra a revogação da portaria. Ao
citar reportagens do Estadão, a
ação afirma que “os documen-
tos oficiais do Exército demons-
traram que a elaboração do pa-
recer de Pacelli ocorreu em me-

nos de 24 horas – às 22h do dia 15
de abril – e consistiu em um e-
mail pessoal de três linhas”.
O documento foi baseado,
ainda, em outro parecer , subs-
crito por Fernanda Regina Vila-
res, chefe da Assessoria Espe-
cial de Assuntos Legislativos do
Ministério da Justiça. Essa se-
gunda peça limita-se a um “OK”
em mensagem de WhatsApp.
A Justiça Federal deu prazo
de 72 horas para a AGU dar ex-
plicações, a contar do dia 4 de
junho. Em nota, o órgão afir-
mou que está reunindo informa-
ções com ministérios responsá-
veis pela portaria, para poder se
manifestar.
A pressão de Bolsonaro para

armar a população e aprovar a
portaria foi evidenciada com a
divulgação da tensa reunião mi-
nisterial do dia 22 de abril. O
vídeo foi tornado público no
mês passado por determinação
do Supremo Tribunal Federal

(STF) e mostra Bolsonaro de-
terminando, nominalmente,
que o seu então ministro da Jus-
tiça Sérgio Moro, e da Defesa,
Fernando Azevedo, providenci-
em a portaria que ampliava o
acesso a munições. A norma foi

publicada no dia seguinte.
Especialistas em direito admi-
nistrativo ouvidos pelo Esta-
dão consideraram “grave” e
possível “fraude” a decisão do
Ministério da Defesa de utilizar
parecer de um general exonera-
do e sem função numa portaria
para aumentar o limite de com-
pra de munições. No País,
379.471 armas estão nas mãos
da população, segundo a Polícia
Federal. Dessa forma, o novo de-
creto pode possibilitar a com-
pra de 227.682.600 balas (
munições por arma).
Após a divulgação da reporta-
gem, o Ministério da Defesa afir-
mou em nota que “o militar esta-
va em pleno exercício legal do
seu cargo ao assinar os docu-
mentos”. No entendimento da
Defesa, uma regra expressa do
art. 22 da Lei 6.880/80 permite
que o militar possa assinar atos
mesmo exonerado e com um
substituto em seu lugar.

Líder do Centrão


é acusado de


receber propina


A Procuradoria-Geral da Repú-
blica denunciou no Supremo
Tribunal Federal o deputado fe-
deral Arthur Lira (PP-AL), um
dos principais líderes da sigla e
do Centrão, por corrupção pas-
siva. Ele já responde a duas
ações na Lava Jato.

Segundo a denúncia, Lira
atuou como arrecadador de pro-
pina para o PP. Ele é acusado de
movimentar R$ 1,6 milhão da
Queiroz Galvão em troca de de-
fender interesses da empresa
no governo federal.
A defesa de Lira afirmou, em
nota, que a denúncia não se sus-
tenta. O advogado Pierpaolo
Bottini criticou o uso da dela-
ção de Alberto Youssef, que te-
ria “inverdades”, e disse que, no
processo, há depoimento que
desmente a acusação. / B.P.

Justiça intima Bolsonaro para


explicar portaria sobre munições


lCenário
“Bolsonaro está querendo
armar o povo para uma
expressão política. E
um homem que quer
armar parte da população
está preparando uma
guerra civil. Então, acho
que tem que trabalhar
para, ou neutralizá-lo
visando ir até 2022, ou
afastá-lo antes disso.”

“Bolsonaro pensa
muito curto. Ele negou a
epidemia (da covid-19)
porque achava que era
contrária a ele.”

Rio. Fernando Gabeira em sua residência; jornalista afirma que reunião ministerial divulgada mostrou ‘fatos alarmantes’

‘Generais


viram que


proposta é a


guerra civil’


Para Gabeira, Bolsonaro


pode ‘neutralizar’ Forças


Armadas e recorrer às


polícias militares para


articular um golpe


Presidente pede a TSE que


rejeite provas de inquérito


SD DANTAS SILVA/EXERCITO BRASILEIRO–25/11/

Ação foi aberta após


‘Estadão’ revelar que


autorização foi feita, a


pedido do presidente,


por militar já exonerado


General. Pacelli estava exonerado quando assinou portaria

Breno Pires
Rafael Moraes Moura / BRASÍLIA


A defesa do presidente Jair Bol-
sonaro pediu ao Tribunal Supe-
rior Eleitoral (TSE) que rejeite
o compartilhamento de conteú-
do do inquérito das fake news
com os processos eleitorais que


buscam a cassação da chapa pre-
sidencial eleita em 2018.
A pedido do PT, o TSE ainda vai
analisar se inclui ou não as provas
do inquérito do STF, conduzido
pelo ministro Alexandre de Mo-
raes – que nesta semana tomou
posse como ministro do TSE. Há
também pedidos para inclusão

dos conteúdos da Comissão Par-
lamentar Mista de Inquérito (C-
PI Mista) das Fake News.
A advogada Karina Kufa, que
representa a chapa Jair Bolsona-
ro e Hamilton Mourão, afirmou
que os pedidos devem ser rejei-
tados porque não teriam, segun-
do ela, relação com o objeto ori-
ginal da ação de investigação ju-
dicial eleitoral. “São diametral-
mente opostos ao que se discu-
te na presente ação”, disse.
O pedido é fundamental para a
defesa de Bolsonaro porque, no

cenário atual, a inclusão de novas
provas do controverso inquérito
do STF é vista como algo que po-
de pavimentar o caminho da cas-
sação do presidente e do vice no
TSE. As ações mais delicadas são
as que tratam do disparo de men-
sagens em massa pelo What-
sApp. A avaliação entre minis-
tros do tribunal é a de que o com-
partilhamento, caso seja autori-
zado, deve dar um novo fôlego às
investigações que apuram o dis-
paro de mensagens em massa na
campanha presidencial de 2018.
Free download pdf