O Estado de São Paulo (2020-06-07)

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O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 7 DE JUNHO DE 2020 Internacional A


MARIO VARGAS


LLOSA


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or que razão não foi divulgada
a maneira tão eficiente com a
qual o Uruguai lutou contra o
novo coronavírus? É verdade que se
trata de um pequeno país, de apenas
3,5 milhões de habitantes, esmagado
entre vizinhos muito maiores, como
Brasil e Argentina. Mas estes gigan-
tes teriam se saído bem melhor se,
em vez de fazer o que fizeram para
conter (ou melhor dizendo, incenti-
var, no caso brasileiro) a pandemia,
tivessem seguido o exemplo uru-
guaio.
Luis Lacalle Pou, o novo presiden-
te do Uruguai, acaba de subir ao po-
der após derrotar a Frente Ampla da
esquerda, que acumulara 15 anos de
governo, mas respeitando a liberda-
de de expressão e as eleições livres.
Em 13 de março, foram anunciados
os primeiros quatro casos confirma-
dos de coronavírus no país.
Enfrentando as pressões da oposi-
ção de esquerda e até de sua aliança
de brancos e colorados, Lacalle Pou
resistiu à decretação de uma quaren-
tena, como fizeram tantos países no
mundo. Apelando para a responsabi-
lidade dos cidadãos, ele declarou
que ninguém que quisesse sair para
a rua ou continuar trabalhando se-
ria impedido de fazê-lo, multado ou
preso, e não haveria aumentos de im-
postos, pois a empresa privada de-
sempenharia um papel central na re-
cuperação econômica do país, após
a catástrofe. Apenas seriam suspen-
sas as aulas nos colégios e as frontei-
ras seriam momentaneamente fe-
chadas.
A vice-presidente do Uruguai, Bea-
triz Argimón, declarou à imprensa:
“Para nós, a liberdade do indivíduo é
muito importante. O presidente
nunca quis tomar uma medida que
não levasse em conta este aspecto
fundamental que é nossa filosofia de
vida”.

O resultado desta política, que não
quis aproveitar-se do vírus, como al-
guns governos democráticos da Euro-
pa e da América Latina, para restringir
as liberdades e promover sua agenda
política sem os transtornos da oposi-
ção parlamentar, não poderia ter sido
mais positivo.
Tenho diante de mim os resultados
do último informe emitido em Monte-
vidéu, assinalando que os mortos no
Uruguai pela pandemia são 23, os casos
confirmados 826 e os recuperados 689.
Difícil imaginar um balanço menos
trágico. É certo que a Suécia, que ado-
tou uma política semelhante à do Uru-
guai, registrou muitos casos e mortes,
principalmente em casas de repouso
para idosos e, além disso, a população
local agiu de maneira menos prudente
e responsável que os uruguaios.
A Suécia apresentou um superávit
em seu balanço do ano, de modo que os
prejuízos econômicos a afetarão muito
menos do que outros países que, para
combatê-la, paralisaram a economia e,
de agora em diante, terão de arcar com
as consequências.
O grande problema que o Uruguai
enfrenta é sua fronteira com o Brasil,
uma cidade que ambos os países com-
partilham, e onde, com o caos brasilei-
ro criado por Jair Bolsonaro, os casos
do coronavírus se multiplicam. Lacalle
Pou visitou duas vezes a cidade frontei-
riça de Rivera e, para saber se foi conta-
minado pelo vírus, ficou vários dias em
isolamento voluntário.
Conheço Lacalle Pou, concordei
com ele em encontros de liberais e de-
mocratas, e não me surpreende que te-
nha se mostrado a exceção à regra ao
assumir o poder, depois de uma campa-
nha eleitoral formidável.
Ele é um homem jovem, de princí-
pios, amante da liberdade e das ideias
do verdadeiro progresso. Com sua co-
rajosa atitude frente ao flagelo que se
abate sobre o mundo, ele poderá pou-

par ao Uruguai boa parte da catástrofe
econômica que se abaterá sobre os paí-
ses cujos governos, apavorados pela
pandemia, e a perda de popularidade,
se apressaram a fechar fábricas e lojas e
a impor um confinamento extrema-
mente severo, ou a anunciar aumentos
de impostos e estatizações, sem pensar
que tudo isso contribuirá para agravar
a tragédia econômica, uma das heran-
ças da praga e a mais difícil de sanar.
Lembro muito bem de minha primei-
ra visita ao Uruguai, em 1966. Era uma
época de ditaduras militares de direita
e de esquerda na América Latina. Uma
das exceções a esta tendência eram o
Uruguai, e outras, Chile e Costa Rica.

Tudo era civilizado e notável neste
pequeno país de classe média, onde
não se viam os gigantescos contrastes
econômicos e sociais, visíveis em toda
parte na América Latina. Tudo me sur-
preendia: a excelente qualidade do seu
jornalismo, de seus teatros, a magnífi-
ca livraria antiquário de Linardi y Ris-
so, onde encontrei primeiras edições
de Onetti e de Borges, e sua plêiade de
brilhantes escritores e críticos – Juan

Carlos Onetti, Rodríguez Monegal,
Idea Vilariño, Ángel Rama, Mario Bene-
detti, Ida Vitale, Martínez Moreno e
muitos outros – e um semanário, Mar-
cha, que dedicava um terço de suas pági-
nas à cultura, e pouco depois desempe-
nharia um grande papel em toda a
América Latina. Chegar a este país, era
algo que levantava a moral de um sul-
americano. O mais admirável nele era a
sua democracia, a mais autêntica de to-
do o continente.
O que terá levado os jovens uru-
guaios a revolucionar aquele país exem-
plar desencadeando a ação armada dos
tupamaros? O exemplo cubano, eviden-
temente, o delirante sonho de trazer o
paraíso à terra com o poder das armas.
As ações armadas e o terrorismo de es-
querda foram esmagados, e o Exército


  • quem diria no Uruguai – estabelece-
    ria uma ditadura implacável no que, até
    então, parecera a exceção aos maus
    hábitos políticos latino-americanos.
    Durante muitos anos, o Uruguai não
    foi nem a sombra do que havia sido, e o
    próprio Onetti, provavelmente o escri-
    tor mais indiferente à política e à revo-
    lução na história da América Latina, foi
    parar na cadeia e (graças à Espanha) se
    livrou de passar longos anos na prisão.
    No final, terminaria em Madri. Ele não
    quis regressar ao seu país quando a dita-
    dura acabou e a democracia restabeleci-


da decidiu condecorá-lo.
Tudo isso ficou para trás e ele pas-
sou pelo poder da Frente Ampla. A
coalizão de todas as esquerdas ser-
viu pelo menos para deixar claro que
é possível na América Latina um go-
verno de esquerda sem que a liberda-
de tenha de sucumbir. Outros países
latino-americanos o demonstraram
também com governos de direita
que, diferentemente das caricaturas
que lhes inflige a esquerda, também
respeitam a lei, a crítica da imprensa
e garantem eleições livres. E, sobre-
tudo, não roubam, uma propensão
compartilhada (lá como aqui) por
políticos de todas as ideologias.
Com Luis Lacalle Pou, o Uruguai
poderá ir ainda mais longe, apesar do
coronavírus. Se há alguém que tem
condições de dirigir uma transforma-
ção profunda do seu país, graças às
ideias democráticas, é ele, como o
demonstrou nesses dias difíceis nos
quais iniciou sua gestão resistindo às
pressões para que seguisse o exem-
plo de tantos outros governos. Acre-
ditando combater o flagelo da pande-
mia, estes decretaram confinamen-
to obrigatório e o fechamento de es-
critórios e fábricas, com o risco de
aprofundar a pobreza e, quem sabe,
de barbaridades como as estatiza-
ções e aumentos de impostos.
Será formidável para a América La-
tina se da terra de José Henrique Ro-
dó, cujas ideias foram uma religião
para os jovens do século passado em
todo o continente, nestes dias, sair o
exemplo de uma sociedade que,
construída sobre o princípio iniludí-
vel da liberdade, possa assegurar a
justiça social com base em uma eco-
nomia de mercado, garantir um alto
padrão de vida ao conjunto dos cida-
dãos, premiar os que mais contri-
buem para o progresso comum, per-
mitir a livre concorrência e promo-
ver a cultura, em um ambiente de
controvérsia civilizada. Em momen-
tos tão difíceis como os que vivemos
atualmente nesse planeta, sonhar
não custa nada. / TRADUÇÃO DE ANNA
CAPOVILLA

]
É PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA.
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O exemplo uruguaio


Lacalle Pou disse que não
aumentou impostos e apelou à
responsabilidade dos cidadãos

MARIANA GREIF/REUTERS–23/5/
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