O Estado de São Paulo (2020-06-07)

(Antfer) #1

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A6 Política DOMINGO, 7 DE JUNHO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


VERA


MAGALHÃES


A


questão atual não é se Jair
Bolsonaro cometeu ou não
crimes de responsabilidade
desde que resolveu rasgar a fantasia
de democrata ainda em janeiro, mas
notadamente a partir do início da
pandemia do novo coronavírus.
É notório que o presidente da Re-
pública usa a crise de saúde e econô-
mica para afrontar os demais Pode-
res, avacalhar as instituições, avan-
çar em seu projeto armamentista e
de cooptação das Forças Armadas e
das polícias militares para defendê-
lo das tentativas de contenção cons-
titucional dos demais Poderes.

A cada fim de semana, o Brasil agra-
va seu estado de anomia, caminhando
de forma perigosa, sob o beneplácito
de muitos dos que teriam obrigação
legal de agir, para algo próximo de uma
ruptura. Este domingo pode fornecer
o pretexto que o presidente busca, mas
não é este o único risco colocado dian-
te de uma nação perplexa, apavorada e,
em grande medida, ainda inerte.
Na última semana, o presidente re-
solveu incluir outro crime no rol dos
que já cometeu: atentado à saúde públi-
ca. Diz o artigo 267 do Código Penal
que é crime contra a saúde pública cau-
sar uma epidemia. Isso pode se dar por

ação ou omissão, e ao verbo “causar”
pode-se incluir ações para agravar
uma epidemia em curso.
Bolsonaro determinou a revisão do
horário e da metodologia de divulga-
ção de dados da covid-19. Pior: depois
de efetivar um general como interino
na pasta, de coalhá-la de militares e
exonerar técnicos em massa e de esta-
belecer, por medida provisória, um “ex-
cludente de ilicitude” para ações de ser-
vidores ao longo da pandemia, pressio-
na pela revisão de todos os dados até

agora. O site do Ministério Interino da
Saúde também passou a omitir dados
divulgados desde o início da crise.
Tudo isso configura atentado ofi-
cial, deliberado e com documentação
contra um País que vive um pico desor-
denado de covid-19 enquanto seus go-

vernantes discutem uma reabertura
prematura e também ela criminosa.
Para agravar o que já é uma situação-
limite, neste domingo, tudo conspira
para que haja confrontos entre mani-
festantes e que esse seja o pretexto que
Bolsonaro aguarda para tentar medi-
das ainda mais autoritárias.
Opositores do governo, com pautas
justificadas, organizam atos em várias
cidades contra o racismo e o fascismo.
Mas o fazem também eles ignorando a
necessidade de distanciamento social
e não percebendo que levar o enfrenta-
mento do governo para esse campo é
tudo que a natureza golpista e belicosa
do bolsonarismo quer neste momento.
Não por outra razão o presidente e
seus 300 fanáticos afrontam mais de
70% da população do País semana após
semana. O que o presidente, o vice, os
filhos do presidente, as milícias bolso-
naristas e os deputados teleguiados
querem é que haja violência que justifi-
que tentar enquadrar grupos antigover-
no na Lei Antiterrorismo, num claro

movimento de cerceamento ao di-
reito de manifestação e sem tratar
com o mesmo critério aqueles que
pedem intervenção militar ou fecha-
mento do Congresso e do Supremo.
O domingo pode fornecer a des-
culpa que o presidente está buscan-
do para tentar empastelar as investi-
gações do STF, impedir que elas che-
guem à Justiça Eleitoral e calar ain-
da mais um Congresso que já está
com o rabo entre as pernas enquan-
to os partidos do Centrão vão às
compras nas gôndolas, antes fecha-
das a eles, do bolsonarismo.
É preciso que os líderes dos movi-
mentos de oposição entendam a ar-
madilha e orientem seus seguidores
a não caírem em provocações e não
deem pretexto para policiais simpati-
zantes do presidente agirem com tru-
culência. Os governadores também
precisam comandar suas polícias efe-
tivamente, sob pena de serem as pri-
meiras vítimas de um golpe que, se
vier, terá nas PMs a força motriz.

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Domingo, o dia D


Andreza Matais
Rafael Moraes Moura / BRASÍLIA


O ministro Gilmar Mendes, do
Supremo Tribunal Federal
(STF), disse que, se houver “si-
lêncio” e “inércia” das pessoas
à postura antidemocrática do
grupo do presidente Jair Bolso-
naro, “daqui a pouco pode ser
tarde” para a preservação das
instituições. Em entrevista ao
Estadão, ele considerou um
“alerta” a comparação feita pe-
lo decano da Corte, Celso de
Mello, entre o Brasil atual e a
Alemanha de Hitler – numa
mensagem de WhatsApp, Cel-
so de Mello acusou bolsonaris-
tas de odiar a democracia e pre-
tender instaurar “desprezível e
abjeta ditadura”.
Na avaliação de Gilmar, a ra-
dicalização da crise “desper-
tou a brasilidade”. As “forças
civis”, segundo ele, têm uma
mensagem clara: “Vamos pa-
rar de brincar de ditadura”. So-
bre a reunião de Bolsonaro
com ministros em 22 de abril,
no Palácio do Planalto, marca-
da por ofensas e ataques a ins-
tituições, o magistrado disse
que o encontro revela um
meio de governar. “Quem ti-
nha ilusões que não as tenha
mais e, portanto, eu acho que
ali nos ensinaram como não se
fazer uma reunião governa-
mental”, disse o ministro.
Na ocasião, o ministro Abra-
ham Weintraub, da Educação,
atacou ministros da Corte, di-
zendo que colocaria “esses va-
gabundos todos na cadeia, co-
meçando no STF”. “Não hou-
ve nenhum reparo de nenhum
dos membros (da reunião). A
coragem é uma virtude muito
rara, mas ela não estava naque-
la sala”, afirmou Gilmar. Confi-
ra a seguir a entrevista.


lDepois de suspender a nomea-
ção de Alexandre Ramagem para
a Polícia Federal, barrar a expul-
são de diplomatas venezuelanos
e limitar o alcance de uma medi-
da que criou um “salvo-conduto”
a gestores públicos, o STF se fir-
mou hoje como contrapeso ao
governo Bolsonaro?
O tribunal cumpriu o impor-
tante papel de guardião da
Constituição. Afirmou a com-
petência do governo federal de
lidar com temáticas como a da


saúde e do transporte (no en-
frentamento da pandemia), mas
compartilhou essa competên-
cia com Estados e municípios.
Acho que, com isso, o tribunal
preservou vidas e seguiu as
prescrições da Organização
Mundial da Saúde. O tribunal
também ajudou na governan-
ça, ao suspender normas da
Lei de Responsabilidade Fiscal
para autorizar o governo a,
eventualmente, atuar de ma-
neira mais confortável em rela-
ção a dívidas. Nesse contexto,
não devemos ver uma relação
de adversidade em relação ao
governo, mas um esforço de
cumprir bem essa função de
guardião da Constituição, que
tem sido muito criticada, por-
que surgiu aí essa corrente um
tanto exótica, quase esotérica,
que é passar esse papel de guar-
dião da Constituição para as
Forças Armadas.

lNa sua opinião, o artigo 142 da
Constituição dá margem para
uma intervenção militar, como
têm defendido aliados do presi-
dente?
O artigo 142 é bastante claro
ao dizer que cumpre às Forças
Armadas o poder de institui-
ções de Estado e que cabe a
elas proteger os poderes cons-
titucionais e atuar na defesa da
lei e da ordem. Daí a derivar-se
para intérprete da Constitui-
ção, me parece que vai uma dis-
tância abissal. Se alguém falou
que o 142 permite o autogolpe,
isso seria absolutamente in-
constitucional. Não tem nada
a ver com a Constituição. Gol-
pe é inconstitucional – isso
tem de ficar muito claro.

lConsiderando que o número de
militares em postos do Executivo
já chega a 2,9 mil, o senhor acha
que as Forças Armadas vão ter
uma conta grande para pagar
por estar tão inseridas dentro do
atual governo?
Isso pode revelar algum proble-
ma até de índole institucional
a médio e longo prazo, signifi-
cando o envolvimento de mili-
tares com a política. Nossa
preocupação institucional é
não levar a briga política para
os quartéis. As Forças Arma-
das são instituições da Nação,
e não de uma força política. A
politização das Forças Arma-
das será extremamente negati-
va para elas e para todo o equi-
líbrio do sistema político.

lQual foi a sua reação ao assis-
tir ao vídeo da reunião ministerial
de 22 de abril, quando o ministro
da Educação, Abraham Wein-

traub, chamou os integrantes do
Supremo de “vagabundos”?
Vi essa reunião com tristeza.
Eu desafio vocês a listarem
dez resoluções que foram to-
madas naquela reunião. Seria
um grande desafio produzir
uma ata – que deliberações fo-
ram tomadas? Mas também
achei extremamente positivo
porque, para a história do Bra-
sil, aquilo é revelador de um
meio de governar. Quem tinha
ilusões que não as tenha mais

e, portanto, acho que ali nos
ensinaram como não se fazer
uma reunião governamental.
Tanto é que vi com bons olhos
o anúncio do presidente de
que não faria mais reuniões go-
vernamentais. Se for para repli-
car esse tipo de reunião, de fa-
to, se está realmente a jogar pé-
rolas a porcos, não faz sentido
algum. Foram muitos impropé-
rios como esse do ministro da
Educação, que, diga-se de pas-
sagem, não deu uma palavra so-
bre educação. Ele faz apenas
considerações da crise política
e da vontade que ele tinha de
prender os 11 “vagabundos”
que eram ministros do Supre-
mo, e não houve nenhum repa-
ro de nenhum dos membros.

lO silêncio dos outros ministros
foi cumplicidade?
Em geral, as pessoas que exer-
cem funções públicas dessa
elevação devem ter coragem. A
coragem é uma virtude muito
rara, mas ela não estava naque-
la sala para colocar as coisas
nos seus devidos lugares.

lO senhor acha correto o minis-
tro da Defesa, Fernando Azeve-
do, sobrevoar uma manifestação

com mensagens antidemocráti-
cas, ao lado do presidente da Re-
pública, utilizando um helicópte-
ro do Exército?
É preciso olhar isso de forma
crítica e espero que o general
Fernando faça essa análise. Se
sobrevoa uma área usando apa-
relho do Exército, ainda que se
diga que é um ministro exer-
cendo função política, ele é o
ministro da Defesa, tem posi-
ção singular e acaba por envol-
ver, ainda que de forma indese-
jada, as Forças Armadas, e isso
não me parece correto.

lComo o senhor prevê o desfe-
cho dessa crise política, que tem
contado com a participação do
presidente da República em atos
antidemocráticos?
Tenho a impressão de que a ra-
dicalização da crise, causada
por esses tumultos institucio-
nais, despertou a brasilidade e
as forças civis. Vimos aí inúme-
ros pronunciamentos de pes-
soas representativas, dizendo
“chega”, “basta”, “vamos parar
de brincar de ditadura”. Me pa-
rece que as pessoas estão en-
tendendo que isso não é o cha-
mado passeio de um soldado e
um cabo. É preciso que se ob-

serve que o Brasil é uma nação
que tem um apreço pela demo-
cracia e que é preciso encerrar
essas bravatas, essas ameaças,
essa tentativa de coerção dos
Poderes a partir de alguns mal-
feitores das ruas, que se alber-
garam aí em alguns partidos.
Tenho a percepção que vamos
superar essa crise de forma
muito civilizada.

lO ministro Celso de Mello fez
uma comparação entre o Brasil
atual e a Alemanha de Hitler. Co-
mo o senhor avalia?
O que o ministro Celso quer di-
zer é que essa escalada, se hou-
ver o silêncio e a inércia das
pessoas que defendem a demo-
cracia, daqui a pouco pode ser
tarde. Foi isso que ele quis nos
advertir, lembrando o que
ocorreu inclusive na República
de Weimar, chamando aten-
ção para o fato de que, em prin-
cípio, Hitler chega ao poder pe-
la via normal, mas depois ob-
tém poderes excepcionais e
passa a utilizá-los. Não vou im-
putar ao presidente propósi-
tos ditatoriais, mas é claro que
no seu entorno há gente que
está a reverberar o fechamen-
to do Congresso, do STF, uso
das Forças Armadas. São to-
dos propósitos inconstitucio-
nais. Quem tem responsabili-
dade de comando, inclusive,
tem de dizê-lo.

lO senhor concorda com Bolso-
naro, que chamou os manifestan-
tes contrários ao governo de
“marginais” e “terroristas”?
Todos nós que somos defenso-
res da democracia e do Estado
de Direito devemos repudiar
todas as manifestações violen-
tas, que não só praticam violên-
cia, mas que preconizam vio-
lência, inclusive violência insti-
tucional, de modo que acho
que as autoridades governa-
mentais têm o direito e devem
tomar medidas contra as mani-
festações violentas ou contra
aquelas que preconizam violên-
cia. Defender o fechamento do
STF, do Congresso, defender
ações armadas, tudo isso preci-
sa ser claramente repudiado –
e isso tem de constar da agen-
da de repúdio do governo.

lO senhor já presidiu o Tribunal
Superior Eleitoral. Há elementos
para a cassação da chapa Bolso-
naro-Mourão ou o TSE pode virar
um atalho?
O valor maior que a Justiça
Eleitoral deve tutelar é o da de-
mocracia, e a democracia é
traduzida no voto dos eleito-
res. A sua intervenção deve
ser subsidiária, não pode ser
substancial.

lÉ aceitável que algumas cate-
gorias ganhem reajuste salarial e
penduricalhos em plena pande-
mia do novo coronavírus?
Da nossa parte, no STF, pelo
menos nós damos o exemplo.
Mas é sabido que especialmen-
te nos Estados, o teto de minis-
tro do STF se tornou piso, e is-
so é bastante constrangedor. É
importante que a própria popu-
lação reaja e diga um “basta”.
Não é razoável que um promo-
tor ou juiz ganhe R$ 60 mil, R$
100 mil. Isso é inconstitucional.

Bolsonaro busca pretexto
para golpe enquanto
comete crimes em série

‘Manipular dados é manobra de
regimes totalitários’, diz Gilmar

GABRIELA BILO / ESTADÃO - 26/6/

lAlerta
“O que o ministro Celso
quer dizer é que essa
escalada, se houver o
silêncio e a inércia das
pessoas que defendem a
democracia, daqui a pouco
pode ser tarde. Foi isso que
ele quis nos advertir,
lembrando o que ocorreu
inclusive na República de
Weimar, chamando atenção
para o fato de que em
princípio Hitler chega ao
poder pela via normal, mas
depois obtém poderes
excepcionais e passa a
utilizá-los.”

Cenário. Ministro pede fim de ‘bravatas’ e diz que crise será superada de forma ‘civilizada’

ENTREVISTA


‘Vamos


parar de


brincar


de ditadura’


Para ministro do


Supremo, ‘forças civis’


têm reagido à postura


antidemocrática de


apoiadores de Bolsonaro


Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal


Página. A
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