Exame - Portugal - Edição 439 (2020-11)

(Antfer) #1
NOVEMBRO 2020. EXAME. 55

ISABEL UCHA / Presidente da Euronext Lisboa


“HAVERIA VANTAGENS EM ALARGAR GARANTIAS


DO ESTADO ÀS EMISSÕES DE OBRIGAÇÕES”


A presidente da Euronext Lisboa analisou, em entrevista à EXAME, as recomendações da OCDE
que mais poderiam ajudar a dinamizar o mercado de capitais. Isabel Ucha aponta a estratégia fiscal


e algumas alterações legislativas como pontos essenciais para revitalizar a bolsa portuguesa


Das recomendações deixadas
pela OCDE quais destacaria?
Há várias áreas de medidas. Desde
logo relacionadas com o enqua-
dramento jurídico-regulatório,
sobretudo no que diz respeito
aos requisitos que as empresas
enfrentam para estarem cotadas.
Há um trabalho a fazer de simplifi-
cação e de informação. No âmbito
deste enquadramento jurídico-
-regulatório, há uma série de su-
gestões muito concretas como, por
exemplo, a introdução das ações
com voto plural que é um tema
que a Euronext e a Associação de
Emitentes também têm apoiado.
Possibilitar que determinada
categoria de ações tenha mais
votos do que os seus respetivos
direitos económicos permite
manter o controlo das empresas,
um tema que é muito sensível.
É uma prática que já existe e que
é utilizada por grandes cotadas
internacionais, como a Google ou a
Microsoft, e que tem permitido que
os empreendedores e gestores


originais mantenham o controlo
da empresa, mesmo realizando
aumentos de capital significativos.

Mas em Portugal não parece ha-
ver grande tradição em usar esses
instrumentos...
Do ponto de vista jurídico, o único
mecanismo que existe em Portu-
gal são as ações preferenciais sem
direito a voto. De resto cada ação
tem direito a um voto. O quadro
jurídico nacional não permite com
clareza e segurança criar estruturas
acionistas com classes e direitos de
voto diferentes. Tem de haver uma
intervenção legislativa clara que
introduza esta figura.

Tem notado abertura do Governo
para acomodar algumas das reco-
mendações deixadas pela OCDE?
Sim. Por exemplo, há um conjunto
de alterações do Código dos
Valores Mobiliários que já está a ser
discutido. E gostaria de destacar
também o papel do Banco de
Fomento, que está a ser consti-
tuído. O que está subjacente no
relatório, e a leitura que eu faço
também, é que, na missão do
Banco de Fomento, um dos pilares
estratégicos seja a promoção e o
desenvolvimento das soluções
de financiamento através do
mercado. O relatório enumera
um conjunto de ações que po-
deriam ser desempenhadas
pelo Banco de Fomento, como
a formação de empresas e
investidores individuais e pro-
dução de informação e ser a
plataforma a partir da qual
se podem montar este
tipo de iniciativas. Uma
outra função muito
importante, que

não está referida no relatório, é a
atribuição do mecanismo de ga-
rantias mútuas na emissão de obri-
gações. Temos visto que o Estado,
e bem, tem atribuído garantias
muito elevadas ao crédito bancário
neste contexto de pandemia, o que
é absolutamente necessário para
manter a capacidade produtiva e
o emprego. Mas haveria muita van-
tagem em alargar estas garantias
às emissões de obrigações, já que
permitem diversificar as fontes de
financiamento das empresas, ir
buscar outro tipo de investidores,
ganhar visibilidade e assegurar
contacto com os mercados de ca-
pitais. Como o Banco de Fomento
vai incorporar a SPGM [entidade
coordenadora da Garantia Mútua]
pode ter este papel, assim como o
da dinamização de operações de
fusões e aquisições, para ajudar o
tecido produtivo nacional a ganhar
dimensão.

A OCDE também faz sugestões
a nível fiscal. Quais as principais
propostas?
Nas várias vertentes das recomen-
dações há sempre uma faceta fis-
cal associada e o reconhecimento
de que a estratégia fiscal é um ele-
mento muito importante. A OCDE é
muito neutra nestas matérias, mas
estuda e tem a experiência do que
acontece noutros países. A Euro-
next também tem essa experiência
nos nossos outros mercados e te-
mos vindo a propor também essa
medida de conceder algum crédito
fiscal às empresas relativamente
aos custos que as operações em
mercado implicam para elas. Já na
parte dos investidores é necessário
ter uma estratégia fiscal direciona-
da à poupança, especialmente a de

médio e longo prazo, que ajude a
fixar poupança em Portugal e que
vá resolvendo progressivamente o
tema das pensões.

A OCDE sugere também que o
Governo coloque algumas em-
presas públicas em bolsa. Quais
poderiam ser mais relevantes
para dinamizar o mercado de
capitais nacional?
A bolsa nessa matéria é agnóstica.
A opção de colocar uma empresa
pública em mercado é, sobretudo,
política. Mas é importante que o
Estado continue a financiar-se
em mercado junto de investi-
dores individuais, através das
OTRV (Obrigações do Tesouro
de Rendimento Variável). Foram
introduzidas em 2016 e foi uma
decisão muito interessante por-
que começou a dar aos portugue-
ses a possibilidade de investirem
em títulos negociados em bolsa
com um elemento de literacia
financeira. Esse mecanismo de
financiamento foi interrompido,
mas entendemos que deveria
ser retomado. Em relação às
empresas públicas, a colocação de
capital ou emissões de obriga-
ções sempre foram elementos
importantes de dinamização do
mercado. Não é preciso que uma
empresa seja 100% privatizada
para ter relevância no mercado de
capitais. Há inúmeras empresas
na Europa que têm capital público
e capital aberto em mercado. Há
soluções intermédias. Sem querer
fazer nenhum julgamento político
da opção que o Governo possa
tomar, temos observado que há
diferentes tipos de soluções que
têm benefício para as empresas e
para o mercado.
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