A partir do tratamento de mulheres
histéricas, Freud desenvolveu os pilares
de uma terapia revolucionária.
Também explicou que é ok ser reprimido
- a alternativa seria a psicose.
AnnA O. era uma garota de brilho próprio:
bondosa, gente fina e com uma inteligência
acima da média. Vivesse nos dias de hoje,
talvez brigasse pelos direitos das minorias,
fosse dos Médicos sem Fronteira ou tivesse
uma banda – no mínimo, faria sucesso com
um canal só dela no YouTube. Mas Anna O.
foi jovem na segunda metade do século 19,
em Viena, nascida e criada numa família da
burguesia judaica ortodoxa – ambiente nada
acolhedor para meninas fora do padrão espe-
ra-marido. Um exemplo: apegada aos livros,
queixava-se de ter oportunidades medíocres
de estudo, enquanto um irmão, sem a mes-
ma vocação, tinha todo o incentivo – e os
investimentos – dos pais. Para ela sobravam
o bordado e o piano.
Aos 22 anos, sem nunca ter tido um na-
morado, amava incondicionalmente o pai e
obedecia, sem entusiasmo, às ordens da mãe
severa, com quem não se dava bem. Toda
uma juventude que poderia ter sido plena
de experiência, trancada numa mente sem
via de expressão.
Essa história tinha tudo para ser só mais
uma entre as de tantas vidas opacas, naque-
la cidade e naquela época. Mas, a partir de
julho de 1880, a trajetória de Anna O. deixou
de ser só mais uma. Começou quando seu
pai, um rico comerciante de cereais, teve um
abscesso relacionado à tuberculose e ficou
de cama por quase um ano. Até que morreu.
Desde os primeiros sintomas dessa doen-
ça, Anna O. instalou-se ao lado do pai, dia e
noite. Estava obstinada em ser a melhor
enfermeira que alguém pudesse ter. Mas, à
medida que o estado dele só piorava, a filha
foi tomando consciência da realidade dos
fatos: a única pessoa que ela amava estava
indo embora.
Foi justamente nesse período de agrava-
mento da situação que começaram a surgir
em Anna sintomas tão estranhos quanto
inexplicáveis. Primeiro, foi uma tosse ner-
vosa, sem motivo físico. Depois a moça ficou
estrábica de uma hora para outra. E daí em
diante só piorou, a ponto de a afastarem de
perto do pai: paralisias no braço e na perna
do lado direito, insensibilidade no cotovelo,
estreitamento da visão (em um buquê de
flores, só enxergava uma flor de cada vez).
Também começou a repudiar qualquer ali-
mento, mesmo sentindo fome, e a ter episó-
dios de fúria e alucinações (via serpentes
negras no lugar dos cabelos). Chegou ao
extremo de esquecer a própria língua (du-
rante um período, essa menina austríaca só
conseguia se expressar em inglês). Também
tentou o suicídio.
Outra família talvez tivesse trancado An-
na O. num manicômio, que era o que a maio-
ria fazia nessas condições, mas a dela decidiu
apostar nos cuidados do fisiologista Josef
Breuer (1842-1925). Uma decisão acertada.
O médico logo reparou que a paciente tinha
apagões ao longo do dia, quando parecia
estar em outro mundo. E que, nesse estado,
ela pronunciava palavras soltas de quando
em quando, como se fizessem parte de uma
história que Anna estivesse contando a si
mesma. Até que, num desses apagões, alguém
por perto mencionou, totalmente por acaso,
uma das palavras que ela tinha dito. Ao ou-
vir o som da palavra sendo repetida, Anna
O. imediatamente começou a contar uma
história, a história que continha aquela pa-
lavra – uma narrativa que, até então, estava
apenas nos seus pensamentos. E o mais in-
crível: conforme falava, alguns de seus sin-
tomas diminuíam, e ela parecia ir se acal-
mando... até que despertou do apagão, num
estado muito melhor.
Breuer, claro, foi alertado. Então, para
aprimorar esse sistema e conseguir provo-
car as narrativas a qualquer momento, o
médico começou a hipnotizá-la. No meio
dos transes, pedia novas histórias, e solici-
A
imagem: Getty Images DOSSIÊ SUPER 17
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