Dossiê Superinteressante - Edição 415-A (2020-05)

(Antfer) #1
desistir da hipnose – o que acabou sen-
do conveniente, já que Freud nunca foi
um bom hipnotizador. Seu argumento
foi de que nem todo mundo pode ser
hipnotizado, por maior que seja a ha-
bilidade do terapeuta, e assim a mu-
dança visava a uma aplicabilidade uni-
versal da terapia (essa democratização
do alcance da psicanálise também seria
colocada de lado, diga-se, como veremos
ainda neste capítulo).
O substituto que Freud encontrou
para a hipnose foram as falas espon-
tâneas dos pacientes – acordados
mesmo –, principalmente nas partes
mais involuntárias dessas falas, em
detalhes que as pessoas descartariam
em circunstâncias normais. Um pro-
cesso que ele chamou de associação
livre, e que se tornou um dos pilares
do tratamento psicanalítico.
É exatamente desses pilares que va-
mos tratar a seguir, os componentes
essenciais de uma sessão de psicanáli-
se clássica nos moldes freudianos: a
associação livre, a transferência e a
interpretação.

Associação livre
Quando consolidou um processo tera-
pêutico em substituição ao catártico,
Sigmund Freud passou a atender em
seu consultório da seguinte manei-
ra: tudo começava com o paciente se
deitando no famoso divã. A pessoa
não precisava fechar os olhos: Freud
ficava sentado atrás, perto da cabeça
do analisando, para ouvir bem o que
ele diria, mas fora do seu alcance de
visão – de modo que nada na postura
ou semblante do terapeuta pudesse
atrapalhar a espontaneidade da pessoa.
Então o paciente era estimulado a falar.
Não exatamente sobre o problema que
o havia feito procurar a psicanálise, mas
qualquer coisa que lhe viesse à cabe-
ça. Qualquer coisa. Sem censura, tema
ou direcionamento. Não deveria deixar
nada de fora, por mais vergonhoso que

fosse o seu pensamento – aliás, deve-
ria se esforçar para incluir no relato
os detalhes vergonhosos, que qualquer
pessoa preferiria omitir. Podia ser um
sonho, uma reflexão, uma lembrança,
um desejo... ou algo banal que tivesse
acabado de acontecer: “Fui comprar
meus cigarros na esquina, acabei es-
barrando na mulher do vendedor e
fiquei impressionado com o tamanho
das mãos dela. Depois fui ao teatro e
jantei com amigos, mas não consegui
parar de pensar naquele encontro na
venda”. Podia começar assim. Ou não.
A partir daí, Freud incitaria o indiví-
duo a fazer associações. (É importante
isto: o próprio analisando é quem faz
as associações, não o terapeuta.) Por
exemplo, ele podia perguntar no que
aquelas mãos da mulher do vendedor
o faziam pensar: “As mãos grandes da-
quela mulher me fizeram agora lembrar
do meu pai, que era um sujeito alto...
Meu pai morreu de câncer do pulmão...
Quando vi a esposa do vendedor, por
um segundo achei que lembrava um
pouco minha mãe... Faz tempo que não
visito minha mãe”.
O exemplo aqui é meio óbvio, e não

precisa ser doutor em psicologia para
arriscar uma interpretação freudiana.
Mas a essência da associação livre
está presente: ligações feitas entre
partes de depoimentos espontâneos.
No exemplo que eu dei, talvez o pa-
ciente descobrisse, na sessão de psi-
canálise, que suas crises de ansiedade
estão relacionadas a um mal-estar com
a mãe, que o censura por fumar mui-
to, igualzinho ao pai que morreu dis-
so. Esse incômodo com as broncas
maternas talvez fosse a causa incons-
ciente do indivíduo não aparecer na
casa da mãe – e sentir culpa, um con-
flito psíquico, por essa ausência.
Freud concluiu que a associação livre
era o método ideal de acessar o incons-
ciente das pessoas. As emoções, lem-
branças e representações vinham à
tona com muito mais facilidade. E vi-
nham de maneira mais confiável que
na hipnose. Segundo Freud, a hipnose
não permitia que o médico identificas-
se resistências – as maneiras com que
o paciente tenta, mesmo sem perceber,
manobrar suas falas para que o tera-
peuta não descubra o conteúdo que a
repressão tenta manter oculto. Foi um

Freud não era bom de hipnose,
então desenvolveu um método
próprio de analisar as
falas dos pacientes.

O consultório de Freud. Cole-
cionador de antiguidades, ele
levaria seus objetos quando pre-
cisou se mudar para a Inglaterra.
Sua casa em Londres é hoje um
museu e abriga o famoso divã.

imagem: Getty Images DOSSIÊ SUPER 21

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