70 | Sabor. club [ ed. 25 ]
“Quase seis anos de idas e vindas. Quase seis anos
tentando se fazer presente mesmo na ausência. É de longe
o maior e mais pesado desafio que já abracei nesta vida.
Ainda não entendi como eu consigo, muito menos como eles
conseguem. Nos sacrificamos juntos, por um sonho que era
só meu, mas que sempre foi para todos nós.”
Essa é a Lira Müller, 32 anos, hoje chef do sofisticado
Bazzar, no Rio, um dos melhores restaurantes de cozinha
brasileira contemporânea do país. A mensagem publicada no
Instagram diz respeito ao desafio que ela impôs a si mesma
de viver numa cidade, em busca de ser uma cozinheira de
ponta, e deixar o João, 12 anos, e a Cléo, 9, morando
com o pai e ex-marido, em outra.
A mudança aconteceu quando, no meio do curso de
Relações Internacionais, em Brasília (ela já havia feito
Comércio Exterior), ouviu falar de um tal de Ferran Adrià,
cujo restaurante, na Espanha, ficava metade do ano fechado,
para que ele pudesse fazer pesquisas. “Aquilo mexeu
comigo. Eu cresci num meio criativo (pai é fotógrafo, a mãe é
publicitária) e a ideia de uma cozinha inovadora começou
a povoar a minha cabeça.”
Ao entrar no curso de gastronomia, teve um estalo:
“A cozinha me pegou de tal forma que só conseguia pensar
por que fiquei tanto tempo longe dela.” Uma vez dentro,
disse: “Daqui não saio nunca mais”.
É essa paixão descarada, que a gente vê nos olhos da Lira,
que, afinal, explica as artimanhas que ela faz para criar (sim,
criar!) os dois filhos mesmo à distância. Abriu uma janelinha
no trabalho e lá vai ela ao encontro dos pequenos. Não abriu,
tome Facetime (função de ligação em vídeo, da Apple)!
“Não consigo imaginar o que seria da minha vida sem ele”,
ri. Foi pela telinha que viu o primeiro sorriso banguela do
primogênito. “Encostei no fogão e comecei a chorar.”
Pela imagem diz que sabe “se estão bem ou se sofreram
bulling na escola”. A mãe-cozinheira explica que os
primeiros anos de cada filho, quando esteve presente 100%
do tempo e amamentou até 1 anos e quatro meses, foram
fundamentais para a construção da base dessa conexão.
Já distante, assim que eles passaram a ter um compreensão
maior das coisas, passou a levá-los para dentro da cozinha
profissional, para que eles sintam o que ela significa. Desde
a energia e a alta temperatura que há dentro dela. E para ver
também as maravilhas que saem das panelas. E como esse
trabalho exige tanta dedicação.
O processo mais o apoio da terapia infantil fazem com
que seja menos difícil o entendimento da vida que têm,
vendo a mãe aqui e ali. Desde que Lira Müller se destacou na
sua formação, fez um planejamento para fazer estágios nos
restaurantes que a levariam para onde queria chegar. Passou
pelo D.O.M., do Alex Atala; pelo Épice, do Alberto Landgraf;
pelo Remanso do Bosque, do Thiago Castanho. Foi em
Belém, aliás, onde se deu a segunda revelação na sua vida de
cozinheira, depois de encantar-se pelo trabalho do Adrià.
Lá conheceu o mestre Ofir, um verdadeiro mago da
cozinha da floresta, casado com uma índia.
Certa vez, ele pegou a Lira em casa e a levou para o
Mercado Ver o Peso, a fim de apresentar produtos que muito
paraense não conhece. Com os ingredientes nas mãos, foi
para casa dele continuar a aula, de forma muito natural, sem
caderno, sem caneta. “A forma como eu uso fruta hoje tem
influência dele”, diz a autora de pratos como o peixe do dia
com caju grelhado na manteiga de garrafa e caldo
de porco. Ou o camarão cru, com maracujá doce e azedo,
entre outros. “Hoje, a fruta para mim é molho, virou
ingrediente ‘salgado’.”
Além do conceito muito bem definido, Lira investe
profundamente no respeito ao ingrediente. Coisa que
aprendeu com o francês Alain Passard, o grande mestre
da cozinha de produto. Até chegar ao Bazzar há poucos
meses, estava na dentro da cozinha dele, no cultuado
Arpège, em Paris.
Ela chegou lá, depois de rodar por Portugal e Espanha,
pesquisando e trabalhando, quando deu uma esticada até
a casa famosa por fazer pratos apenas com os produtos que
saem da horta do restaurante – além das proteínas, que vêm
de fora. Ao comer, apaixonou-se de tal maneira que quis
casar, com ela diz, com o lugar.
Quase dois anos depois, em 1 de janeiro de 2018, estava
às 7 da matina na porta do restaurante, para integrar a
equipe. Não demorou para a baixinha focada, dedicada
No início da carreira, Lira Müller fez um planejamento para fazer estágios nos
restaurantes que a levariam para onde queria chegar. Do D.O.M ao Arpège, em Paris