Sabor Club - Edição 34 (2019-11)

(Antfer) #1

22 | Sabor. club [ ed. 34 ]


“A crise veio depois de cinco anos trabalhando
14 horas por dia na cozinha profissional, sem
espaço para outras descobertas. Agora começo a
realizar um sonho de vida. Fazer as coisas do meu
jeito, no meu tempo. Minha cerâmica e minha
comida”, diz Natalia. Aos 32 anos, a moça carrega
a experiência de quem chegou ao topo no Grupo
Irajá, de Pedro de Artagão, por volta dos 25. Saiu
em projeto pessoal de “libertação”, viajou da Disney
a Fernando de Noronha. Até que descobriu a
cerâmica e, definitivamente, mudou de vida.
Um bowl cor de esmeralda inicia o almoço,
abrigando pães especiais saindo do forno,

acompanhados por ricota artesanal e manteiga
mineira, ao lado de um pequeno vaso com
pedrinhas e uma solitária margarida amarela.
E Simone aparece para explicar uma joia
lusitana redonda, macia e adocicada chamada
Bolo Lêvedo: “É típico da ilha de São Miguel, nos
Açores, você encontra nas padarias de lá. Leva leite
e manteiga, e faço com fermentação lenta”. Ao lado,
os pães de queijo são adaptações de Natalia para o
bolo podre do Maranhão, terra de sua mãe, agora
feitos com tapioca, minas padrão e parmesão.
Convém solicitar uma taça de vinho português
nesse momento, e aproveitar a viagem no tempo

sugerida pela sala onde também funciona o Museu
do Doce. Relíquias dos antepassados de Simone
estão por toda parte, entre porcelanas e pratas,
cadernos de receitas seculares e fôrmas com brasões
para doces como as marmeladinhas que chegaram a
ser degustadas pelo Imperador Dom Pedro II.
O monarca se curvaria diante da simplicidade
e a precisão do primeiro prato da tarde, receita que
traz afeto a portugueses e brasileiros: o bacalhau
com arroz de brócolis. Equilíbrio e sabores vivos,
do ponto ideal do arroz tingido nas folhas verdes
batidas à textura do peixe, confitado com o
alho e as cebolas. “Os menus são portugueses e

contemporâneos, porque trazem nossa assinatura.
É comida de verdade, com 100% de sabor, afeto
e amor”, define Natalia. “Fazemos as compras nas
feiras orgânicas do bairro.”
Na cesta da semana, batatas doces roxas e
laranjas viraram chips delicados a adornar o
picadinho de filé com toucinho, ao molho de ostra,
e os legumes em minicubos salpicaram de cores o
cuscuz de Braga que acompanha a carne.
É o prato principal, servido após o camarão
espiritual gratinado com creme leite e batata em
purê. A receita leva caldo de legumes e um toque
de shoyu “para um pouco de umami”.

Natália D’Aguiar está de volta à cozinha desde que pediu demissão num
dos maiores grupos da gastronomia carioca. Simone Campos é a nona geração
de confeiteiras de uma família de imigrantes dos Açores

“A cerâmica se parece com a cozinha”
É o que diz a Natália D’Aguiar, agora, uma ceramista de mão cheia
Foi na na baiana Itacaré onde ela se encantou com uma caneca, na casa de uma tia artista
plástica. Em poucos meses de aulas, Natalia já atendia encomendas de louças para
restaurantes dentro e fora do Rio. “A cerâmica se parece com a cozinha. A forma de abrir
a argila com rolo de massa, a mistura dos esmaltes, a queima no forno. Me deixa relaxada
e concentrada”, diz. Hoje, além de vender as peças, ela serve a sua comida nelas –um luxo.
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