National Geographic - Portugal - Edição 215 (2019-02)

(Antfer) #1

66 NATIONAL GEOGRAPHIC


A matança de crianças


e jovens lamas (bens


muito preciosos para


oreino)talvezfosse


uma tentativa de


persuadir os deuses


atravaremaschuvas


que tinham provocado


o caos entre os chimu.


Os chimu não deixaram fontes escritas e, por
isso, além dos achados arqueológicos, o pouco
que se sabe sobre eles é através das crónicas espa-
nholas. Segundo estas, os incas sacrificavam cen-
tenas de crianças sempre que um rei subia ao tro-
no ou morria – afirmação ainda não comprovada
por qualquer prova arqueológica – mas não forne-
cem pistas sobre a prática de sacrifícios infantis de
grande escala. “Até agora, não tínhamos qualquer
ideia de os chimu fazerem algo parecido”, afirma
John Verano, referindo-se ao número inaudito de
vítimas. “É o sortilégio da arqueologia.”


UMA PISTA IMPORTANTE para os acontecimentos
de Huanchaquito é a espessa e antiga camada de
lama seca na qual as vítimas do sacrifício foram
enterradas. Uma camada espessa de lama significa
chuvadas torrenciais e, na costa árida da região
setentrional do Peru, “essas chuvadas só ocorrem
durante o El Niño”, explica Gabriel Prieto.
O sustento da população de Chan Chan provi-
nha de sistemas de irrigação cuidadosamente ge-
ridos e das pescarias costeiras: ambos poderiam
ter sido prejudicados pela subida das temperatu-
ras da água do mar e pelas chuvadas torrenciais
associadas a este fenómeno climático. Um El
Niño grave, segundo teorizam os investigado-
res, poderia ter abalado a estabilidade política e
económica do reino chimu. Os seus sacerdotes e
chefes poderão ter ordenado sacrifícios em mas-
sa como tentativa desesperada para persuadir os
deuses a travar a chuva e o caos.
“Este número de crianças e de animais impli-
cou necessariamente um gigantesco investimen-
to em prol do Estado”, afirma Gabriel Prieto.


Jane Eva Baxter, especialista em história das
crianças e da infância na Universidade DePaul,
concorda que os chimu poderão ter considerado
as crianças uma das oferendas mais valiosas que
poderiam fazer aos deuses.
“Estavam a sacrificar o futuro e todo esse po-
tencial”, afirma. “Toda a energia e todo o esforço
que se investe na continuação da família, na con-
tinuação da sociedade no futuro. É isso que se eli-
mina quando se elimina uma criança.”
A oferenda de crianças talvez represente tam-
bém uma evolução da maneira como as socieda-
des pré-colombianas procuravam obter favores
no mundo dos espíritos. Segundo Haagen Klaus,
professor de antropologia na Universidade Geor-
ge Mason, o sacrifício infantil tornou-se mais
comum na região após a queda dos moche (a cul-
tura que precedeu a dos chimu) no século IX. Os
moche sacrificaram um elevado número de guer-
reiros adultos capturados no seu Templo da Lua,
a poucos quilómetros e poucos séculos de distân-
cia do local onde os chimu instalaram mais tarde
o seu governo – Chan Chan.

A NECESSIDADE DE APLACAR OS ESPÍRITOS e de pôr
fim às chuvas pode ter sido urgente, mas o sacrifício
em massa parece ter sido cuidadosamente ence-
nado. Os jovens lamas (outro recurso importante,
abatidos nas manadas colectivas) parecem ter sido
especialmente escolhidos para este evento.
Nicolas Goepfert, especialista em camelídeos
do Centro Francês para a Investigação Cientí-
fica, analisou a pelagem bem preservada das
vítimas quadrúpedes. Apurou que os chimu se-
leccionaram provavelmente animais específicos
para serem sacrificados em função da sua idade
e cor. Lamas castanhos-escuros foram frequen-
temente enterrados ao lado de lamas castanhos-
-claros, por exemplo, ao passo que nenhum ani-
mal branco ou preto foi sacrificado.
“Sabemos, a partir das crónicas espanholas,
que os incas possuíam um código de cores para os
lamas sacrificiais”, diz Nicolas Goepfert. “Talvez
os chimu também os seleccionassem assim.”
A forma como as crianças foram escolhidas
continua a ser um mistério. Estudos científicos
mostram que as crianças mortas em Huanchaqui-
to eram rapazes e raparigas e que todas tinham
sido bem tratadas, havendo escassos sinais de
subnutrição ou doença. As análises isotópicas aos
dentes sugerem que seriam originárias de muitas
regiões do vasto império chimu. A região posterior
dos crânios de algumas crianças é invulgarmente
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