Veja - Edição 2661 (2019-11-20)

(Antfer) #1
Página aberta

100 20 de novembro, 2019

ApesAr de A evoluÇÃo do Homo sapiens ter sido
significativa graças ao consumo de proteínas, a tendência
destas é desaparecer. A falta de bom-senso, como temos
visto, parece ser um modo imperativo. Não podemos es-
quecer que, antes de mais nada, a alimentação é um pra-
zer, não importa a qual categoria gastronômica pertença a
pessoa. Sem prazer à mesa, nosso dia a dia seria ainda
mais difícil. E sabemos que a realidade está cheia de pro-
blemas maiores, como a miséria e o aquecimento global.
Até pouco tempo atrás, os vegetarianos integravam a
categoria dos que não comiam carne vermelha. Depois,
tiraram o peixe de sua dieta. Agora, o radicalismo
aponta para os veganos como a solução para toda a hu-
manidade. Isso me faz lembrar que certas pessoas abri-
ram mão de combater doenças sérias com o que temos de
mais avançado na medicina, e vemos até crianças não
serem tratadas, não por falta de recursos, mas sim por
decisão dos pais. Alguns males, tidos como extintos ou
em vias de desaparecimento, como sarampo e rubéola,
hoje voltaram a proliferar. Ainda nesse contexto, um me-
ro mosquito pode tornar-se mais perigoso que um escor-
pião ou aquelas aranhas horrendas.
Leio em algumas publicações que o abandono comple-
to dos medicamentos que impedem a proliferação de pra-
gas acabará por desmatar ainda mais o mundo, pois o pe-
daço de terra necessário para o plantio tende a dobrar ou
triplicar de tamanho. Eu nunca vi na história a humanida-
de abrir mão de suas conquistas materiais, sob o risco de o
cultivo avançar por terras hoje virgens. Como dizia, o
bom-senso não existe mais. Ninguém com equilíbrio men-
tal apregoou que devemos comer um boi por semana ou
20 quilos de peixe. Mas, abrir mão de leite, ovos e deriva-
dos que a natureza nos dá, com o devido tratamento ético
aos animais, francamente... Ao trocarmos tudo por soja,
quinoa e variantes, tenho certeza de que a substituição nos
fará algum mal (e também fará mal à natureza). É verdade,
também nos dão hoje morangos que parecem produzidos
em Chernobyl. Isso há de ser evitado a todo custo, mas não
bloqueando completamente o controle de pragas em nos-
sas plantações. Na alimentação, vemos chefs renomados
preconizar que devemos nos alimentar como nossos an-

cestrais, o que seria jogar no lixo milhares de anos de cul-
tura e civilização ó e ainda pôr a culpa por tal atrocidade
na mozzarella. Digo mais uma vez que são os excessos que
nos fazem mal. Vinho faz muito bem, mas o excesso faz
mal ó cada garrafa pode ter 1 000 calorias ó, mesmo sen-
do uma bebida milenar.
Entendo também que devemos estar atentos aos maus-
tratos de animais. Dentro dessa linha, teremos de abrir
mão de processos cruéis, como a criação de foie gras.
Precisaremos encontrar um substituto, dando o devido
tempo de readaptação aos produtores. A Câmara Munici-
pal de Nova York aprovou o banimento do patê de fígado
de pato dos cardápios e das prateleiras de restaurantes e
supermercados da cidade a partir de 2022. Quem desres-
peitar a nova lei pagará uma multa de 2 000 dólares. Con-
cordo que, no futuro próximo, esse tipo de produção não
fará bem a nossa memória. Apenas espero que ninguém
invente um azeite de foie gras assim como fizeram com o
azeite de tartufo, com sabor e aroma mais parecidos com
gasolina do que com qualquer outra coisa. Desse azeite,
aliás, a trufa passa longe ó ele deveria ser vendido em
posto de combustível. Nem cachorros adestrados consu-
miriam esse produto criado em laboratório.
Vejo muito marketing por trás disso tudo. Eu não con-
seguiria servir em meus restaurantes nada por modismo.
Minha memória gustativa é uma microgota num oceano
da memória do DNA da humanidade, mas ela me faz lem-
brar que eu atacava geladeiras em busca de polpettas frias
feitas pela minha nonna. Em minha memória também
consta que nitrogênio líquido servia para nos livrar de
horrendas verrugas, e nem se imaginava que fosse usado
como processo de cozimento. A galinha está lá, livre e sol-

receita indigesta


Com o devido respeito aos animais e ao plantio sustentável, radicalismos gastronômicos como o
crescente veganismo e o banimento do trigo podem minar o deleite fundamental: comer bem

“Estamos perdendo o prazer


de uma boa refeição


e trocando-a por


uma ‘experiência’ ”


rogério fasano*

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