Veja - Edição 2661 (2019-11-20)

(Antfer) #1
20 de novembro, 2019 107

“estou me divertindo à beça”


Vencedora do Oscar pelo papel de
Anne, uma rainha incompetente, Olivia
Colman falou a VEJA sobre interpretar
a eficiente Elizabeth.

Desde o início desta terceira
temporada, Elizabeth é cons-
tantemente confrontada pelas
suas falhas — as verdadeiras e
as imaginadas. A impressão
que se tem é que ela nunca cor-
responde, na própria opinião, à
pessoa que gostaria de ser. Sem
dúvida. E, no entanto, penso que é isso
que a torna tão especial como monarca
— o fato de que ela não crê estar certa
sempre e não se acha ótima, somente
tenta fazer seu trabalho da melhor
maneira possível. Essa humildade é o
que sobressai nela, e é o que é neces-
sário à pessoa que ela é. Sem falar que
o oposto disso, a arrogância, seria in-
finitamente menos atraente.

Mas é algo que vem com muito
sofrimento, não? Com certeza. Não
é um emprego que qualquer um de nós
gostaria de ter. Ela mesma preferiria
não tê-lo, aliás. Imagine só — viver em
uma gaiola, ainda que dourada, com
zero de liberdade. E, mesmo nessas
circunstâncias, ela se dedica integral-
mente e faz um trabalho maravilhoso.

Apesar de ela não ter desejado
seu emprego, por assim dizer,
nesta temporada vemos como

a rainha nega à irmã, a princesa
Margaret, a chance de desem-
penhar um papel maior. Ao que
tudo indica, a relação delas foi mesmo
muito conturbada, mas é óbvio que
Peter Morgan, o criador da série, pre-
cisa recorrer a licenças artísticas pa-
ra dramatizar um ponto crucial: o fato
de que uma irmã tem poder e a outra,
não — e é inevitável que uma assime-
tria como essa repercuta profunda-
mente em um relacionamento. Marga-
ret era notoriamente baladeira e dona
de uma personalidade extraordinária.
E era, ainda, a única pessoa que real-
mente conhecia Elizabeth. Há grandes
deixas para um bom drama aí.

Elizabeth é também um parado-
xo: há décadas ela vive sob es-
crutínio incessante, e qualquer
um de nós imagina saber tudo
sobre ela — mas o fato é que
quase nada se sabe sobre a
pessoa real; é uma vida que per-
manece velada. Como você re-
solveu essa contradição? Existe
certo incômodo em interpretar uma
pessoa tão universalmente reconhecí-
vel, e que está viva e permanece atuan-
te. Ao mesmo tempo, é isso que eu faço
— e não vejo como poderia resistir a
fazê-lo tendo como apoio um roteiro
tão bom e na companhia de atores tão
formidáveis. Estou me divertindo à be-
ça. Eu já era fã de The Crown antes de
conseguir o emprego. Agora, então...

MuitA CERiMÔNiA Olivia em The Crown: cada gesto sob escrutínio

pugnância que isso desperta em Phi-
lip, que tomou a iniciativa de ir sozi-
nho ao terrível funeral coletivo. O
abismo conjugal, enfim, parece cada
vez maior ó assim como a ambiva-
lência com que Elizabeth trata Mar-
garet, e a consternação com que ela
olha seu herdeiro.
No papel do jovem Charles, Josh
OíConnor capta com nuances como-
ventes a vulnerabilidade, o jeito meio
sonhador e a disposição melancólica
do príncipe, em uma atuação que por
si só já propõe uma discussão perspi-
caz sobre a transformação nem sem-
pre harmônica da família real britâni-
ca: justamente por causa desses atri-
butos que sua mãe considera tão inde-
sejáveis, Charles emplaca uma sur-
preendente vitória diplomática no
País de Gales inflamado por aspira-
ções nacionalistas. Mas ganha uma
descompostura arrasadora ó e, em-
bora a cena em questão seja de uma
dureza horrível, o espectador se vê
obrigado a admitir que a rainha tem
argumentos válidos.
Quando Charles se apaixona por
Camilla, que então ainda era solteira,
Elizabeth tenta brecar a conspiração
doméstica para afastá-lo da namora-
da imprópria, mas até essa concessão
tem um quê de menosprezo; Camilla
cura algo da insegurança do príncipe,
argumenta a rainha (que se deixou ser
voto vencido, com as consequências
fartamente conhecidas). E esse, en-
fim, é o aspecto mais fascinante do
que Peter Morgan, seu time de direto-
res e seu elenco fazem em The Crown:
sua recriação da intimidade dos
Windsor é a homenagem que o vício
da bisbilhotice presta à virtude nobre,
e insuficientemente praticada, da re-
flexão ó sobre como um país resolve
suas diferenças, decide entre o supér-
fluo e o útil na sua tradição e também
preserva alguma frieza. A de Eliza-
beth II nem sempre é agradável de ver
ou fácil de compreender ó mas é mais
difícil ainda de praticar. ƒ

Sophie mutevelian/netflix

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