Veja - Edição 2661 (2019-11-20)

(Antfer) #1
20 de novembro, 2019 109

walcyr carrasco


LIBERDADE OU CENSURA?
o radicalismo criou um outro tipo de cerceamento à expressão

ção de orelhada. Por ouvir falar. Mas
justamente os trans não estão lutando
por liberdades, pelo reconhecimento
de direitos? Não é um movimento
contra o obscurantismo, contra a res-
trição? Mas restringem a mim, ao au-
tor, à direção do festival?
Há uma deformação em vários
movimentos que lutam pelos direitos
humanos. Eles podem se tornar radi-
cais e ditatoriais. Existe uma corrente
segundo a qual trans só podem inter-
pretar trans. Para outra, atores e atri-
zes trans podem fazer personagens
femininos ou masculinos. A atriz trans
Maria Clara Spinelli
foi bombardeada por
interpretar uma mu-
lher cisgênero (cis são
as pessoas que se iden-
tificam com seu corpo
de nascença, sejam
gays ou não) na novela
A Força do Querer, de
Gloria Perez. Houve um
personagem trans na
mesma novela, igual-
mente bombardeado por ser inter-
pretado por uma atriz.
A questão é: o ator não é alguém
que se coloca no lugar do outro? Esta-
belecer que trans só podem interpretar
trans diminui o campo de trabalho para
eles, e mesmo as histórias que esses
atores e atrizes podem viver. Ao mes-
mo tempo, se podem buscar outros
personagens, o inverso vale também.
Atores e atrizes não trans poderiam
interpretar trans. É questão de justiça.
Eu sei que ser trans é difícil. Que
trans procuram estabelecer seu espaço.
Lutam por um lugar de fala. Mas o radi-
calismo inverte a situação. Sempre bra-
damos contra a censura conservadora.
Não é o caso de abrir os olhos para um
novo tipo de censura, criada por quem
ergue a bandeira da liberdade? É

Na Novela A Dona do Pedaço, de
minha autoria, na Globo, pela primeira
vez uma atriz trans interpretou uma
trans. Britney (Glamour Garcia) teve
uma imensa acolhida do público. Foi
um gesto pioneiro. Imaginei que isso
me daria credibilidade no próprio uni-
verso trans. Mas não aconteceu. Mi-
nha peça Seios seria apresentada na
Satyrianas. Trata-se de um importan-
te festival de teatro, em São Paulo, que
acontece agora, com 78 horas de ativi-
dades ininterruptas. Na Praça Roose-
velt. Tornou-se um ímã para grupos
alternativos, novos autores, diretores.
Seios, com o ator Dio-
nísio Neto, conta a his-
tória de uma pessoa em
processo de transfor-
mação física ( já com
os seios do título, mas
ainda com o corpo
masculino). E que ten-
ta uma renovação do
relacionamento com a
ex-mulher. De repente,
recebi um telefonema
de Ivam Cabral, ator, dramaturgo e
um dos criadores dos Satyros. Ele ha-
via sido procurado por representante
do Movimento Nacional de Artistas
Trans (Monart), que ameaçava boico-
tar não só meu espetáculo mas todo o
festival se a peça fosse apresentada.
Motivo: a personagem não ser inter-
pretada por uma trans.
Levei um susto. Abri mão da apre-
sentação. Mas fiquei chocado. Na épo-
ca do governo militar, sob o qual eu
vivi, existia a censura. O censor era
alguém encarregado de ler textos jor-
nalísticos, novelas, peças de teatro,
tudo, e cortar o que considerasse ofen-
sivo ao regime. Nós, artistas, odiáva-
mos. Agora deparei com uma realida-
de pior. Fui censurado sem terem vis-
to a peça! Nem lido o texto! É a proibi-

“Há deformação em


vários movimentos


que lutam pelos


direitos humanos.


Eles podem se


tornar ditatoriais”


gens centrais: o brilhante desenvol-
vedor de carros texano Carroll Shel-
by (Matt Damon) e o irascível piloto
inglês Ken Miles (Christian Bale). A
tarefa da dupla era bater os bólidos
vermelhos num de seus palcos pre-
feridos ó em 1966, ano da disputa, a
equipe italiana ainda era comanda-
da por Enzo Ferrari e vinha de seis
vitórias consecutivas no circuito
francês de Le Mans. Embora funda-
mental para o sucesso da empreita-
da da Ford, a entrada de Shelby e
Miles no processo de aperfeiçoa-
mento do GT40 (confira a ficha téc-
nica na pág. ao lado) criou fricções.
A companhia americana por vezes
intrometeu-se em decisões que, na
visão dos protagonistas, deveriam fi-
car a cargo de quem estava na pista.
A queda de braço entre os dois “ga-
ragistas” e os homens de gravata ó a
liberdade com que o diretor James
Mangold retrata os executivos da
Ford é explicada pela ausência de
participação da montadora na pro-
dução ó dura até a última curva da
prova (e do filme). Cabe ao malan-
dro mas maleável Shelby segurar o
pavio curto Miles nos embates com
a burocracia corporativa. Damon e
Bale, aliás, atuam pela primeira vez
juntos ó e revelam-se uma dupla
bem balanceada em cena.
Antes que alguém pense que o
embate fica restrito ao campo das
decisões corporativas, um alívio: na
abertura, já se ouve um motor estri-
lando a quase 7 000 rotações por
minuto, pornografia auditiva que é
música para os fãs da velocidade.
As cenas de corrida são igualmente
excitantes, e fazem jus a outros ex-
poentes da ficção automobilística
ó de Grand Prix, de 1966, ao su-
cesso Dias de Trovão, de 1990, até
chegar a Rush — No Limite da
Emoção, de 2013. Um alerta: na saí-
da do cinema, os mais entusiasma-
dos devem controlar o pé para não
pisar fundo demais no acelerador. É

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