110 20 de novembro, 2019
Cultura MúsiCa
NA CERIMÔNIA de entrega do Nobel
de Literatura de 2016, Bob Dylan
honrou sua fama de recluso enigmáti-
co: não deu as caras para receber o
prêmio. Em seu lugar, mandou uma
figura de aparência não menos desa-
linhada: a americana Patti Smith.
Com seus cabelos brancos desgre-
nhados e roupas que há anos desco-
nhecem um ferro de passar, ela fez
um discurso comovente. Patti estava
ali para dar uma força ao amigo e ído-
lo Dylan. Mas tinha estatura de sobra
para brilhar por si própria. Poeta,
cantora e memorialista extraordiná-
ria, a artista é a equivalente feminina
daquilo que Dylan sintetiza: a perfeita
união entre música popular e literatu-
ra. “Creio que encontrei um caminho
na minha carreira. Se inspirei outras
pessoas a fazer o mesmo, fico feliz”,
disse ela a VEJA (confira os princi-
pais trechos da entrevista abaixo).
O público brasileiro tem, portanto,
razões para comemorar. Aos 72 anos,
Patti é a atração maior do festival
Pop load, que acontece nesta sexta-fei-
ra, 15, no Memorial da América Lati-
na, em São Paulo (ela fará outro show
no sábado 16, com ingressos já esgota-
a intelectual do punk
Por que a americana Patti Smith — que está lançando dois livros e fará apresentações no país
nesta semana — é a maior poeta feminina já produzida pelo rock’n’roll SÉRGIO MARTINS
Patti Smith fala de seu método de criação
literária, do punk e de como a perda de
pessoas queridas a inspirou.
A senhora possui algum método
para escrever seus livros? Para
mim, escrever é igual a cozinhar. Você pe-
ga os ingredientes, coloca num caldeirão,
tempera. Depois, adiciona pão, um pouco
de arroz e tem sua história. Que pode sair
da sua imaginação ou se basear em algo
real. Escrevo assim todos os dias.
Boa parte de seus discos e livros
fala de pessoas amadas que já
morreram. Por que a dor da perda
é uma inspiração tão forte no seu
trabalho? Maria Callas é minha canto-
ra de ópera predileta porque ela conse-
gue como poucas projetar a dor numa
canção. Ao mesmo tempo, porém, tem
muito amor pela vida. Tento passar essa
mesma ideia nas minhas letras e livros.
Falo da tristeza de não ter mais essas
pessoas por aqui, mas também da alegria
que elas me proporcionaram. É uma ma-
neira de trazê-las de volta à vida.
“ESCREVER É igual a COZiNHaR”
dos). O momento Patti se completa
com o lançamento de dois livros dela
no país (pela Companhia das Letras).
Devoção é um breve volume de ficção
e ensaísmo. Em O Ano do Macaco, ela
rememora as relações com o amigo
Sandy Pearlman, que a incentivou a
ser cantora, e o dramaturgo e ex-
affair Sam Shepard ó mortos, respec-
tivamente, em 2016 e 2017.
A vida de Patti é uma sucessão de
feitos e tragédias. Nascida no subúr-
bio de Chicago, filha de pai ateu e mãe
testemunha de Jeová, ela se mudou
para Nova York na juventude ó e logo
se tornaria uma força catalisadora da
cena cultural dos anos 70. Estrela do
movimento punk local, Patti ganharia
o epíteto de poetisa do rock ao promo-
ver o casamento de guitarras cruas e
letras literárias resumido num disco
clássico e fundamental, Horses (1975).
Sua voz rouca e furiosa já foi bem defi-
nida por Michael Stipe, vocalista do
R.E.M.: “Um homem, ao acordar, faz
todo tipo de grunhido para provar que
está vivo. Para eu sentir que estou vi-
vo, só preciso ouvir Patti Smith”.
A tragédia persegue a cantora des-
de o auge como símbolo punk. Em
1977, ela caiu de um palco durante
um show, lesionando a coluna verte-
bral. A partir de então, distanciou-se
dos holofotes. Em 1989, viu o fotógra-
fo Robert Mapplethorpe ó seu amigo
e ex-namorado (embora fosse gay) ó
morrer de aids. Cinco anos depois,
um novo baque: a perda do marido e
pai dos dois filhos, o roqueiro Fred
“Sonic” Smith, ex-guitarrista do
MC5, e também do irmão, Todd.
Por meio da literatura e de espar-
sos discos tardios, Patti expiou a dor
das tragédias. Em 2010, lançou Só
Garotos, livro sobre sua amizade
com Mapplethorpe, e acabou toman-
do gosto pela escrita. Fez outras três
obras, e há mais uma a caminho. “Fi-
co triste quando termino um livro,
porque sinto falta da atmosfera. É
por isso que logo escrevo outro”, diz.
Não deixa de ser irônico que a musa
do punk, que pregava a ruptura radi-
cal com o passado, agora seja uma
memorialista de mão-cheia. O que
Patti pensa da hipótese de, como seu
chapa Dylan, ganhar o Nobel um
dia? “Isso não cabe a mim decidir. Só
quero que reconheçam que faço um
bom trabalho.” É
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