RobeRto pompeu de toledo
114 20 de novembro, 2019
A crise na Bolívia representa um
lamentável retrocesso, não só para
esse país, mas para o conjunto da
América Latina. Outros países do
continente já vinham emitindo si-
nais de instabilidade e outros ainda,
o Brasil na frente, de (digamos, com
benevolência) um certo descuido no
respeito às instituições democráti-
cas. A Bolívia deu um passo além,
ao propiciar, como nos velhos tem-
pos, o espetáculo de um presidente
que vira pó a um piparote do co-
mandante do Exército. Criou, para
os vizinhos do continente, um pre-
cedente perigoso, se é justo falar em
“precedente” quando o que se vis-
lumbra é a volta ao passado.
A destituição de Evo Morales rea-
viva os clichês que tornam a América
Latina tão típica. Um deles é discutir,
depois do golpe, se o golpe foi golpe.
Dar nomes honrosos aos golpes é es-
pecialidade do continente. No Brasil
o passeio militar que instituiu o regi-
me republicano, 130 anos atrás, foi
chamado de “proclamação da Repú-
blica”, e o movimento de tropas que
sufocou o governo em 1964, de “re-
volução”. No caso boliviano a nega-
ção do título infamante de “golpe”
até conta com bons argumentos. Gol-
pe de verdade seria o do próprio Mo-
rales, ao fraudar as eleições. Golpe
seria também seu desrespeito, em
2016, à consulta popular que rejeita-
ra a possibilidade de ele disputar um
quarto mandato. (A justificativa com
que ganhou a causa na Justiça ó de
que, barrando sua candidatura, se
desrespeitava o direito, assegurado a
todos os cidadãos, de votar e ser vo-
tado ó merece o status de clássico
latino-americano de todos os tem-
pos.) E golpe seria ainda ter o presi-
dente manipulado o Poder Judiciário
o suficiente para contar com juízes
subservientes a seus anseios.
Temos então três golpes de Mora-
les contra um dos generais. O placar
confere larga vantagem ao golpismo
do presidente, mas não retira do dos
generais a qualidade de golpe, ainda
mais que se constituiu no vencedor
da parada. A ação dos militares, em
transmissão pela TV, propiciou até,
para os anais da história, a clássica
imagem do golpe ó meia dúzia de
fardados de cara enfezada, alguns
com uniforme camuflado de luta na
selva, bandeiras ao fundo. O fato de
terem optado, na manifestação, por
“sugerir” a renúncia lhes confere o
bônus de um toque de delicadeza,
mas nem assim escapam do golpis-
mo. Um ladrão pode “sugerir” que a
vítima lhe entregue a carteira, mas
tal delicadeza não elide a circunstân-
cia de que exibe uma faca na mão.
No máximo de boa vontade, a
ação dos generais da Bolívia pode
ser chamada de contragolpe. Com
isso, para confirmar as insistentes
recorrências na história da América
Latina, equipara-se ao Brasil de no-
vembro de 1954, ocasião em que re-
cebeu o título de “contragolpe”, en-
riquecido pelo adjetivo “preventi-
vo”, a ação do comandante do Exér-
cito, Henrique Lott, contra as arti-
culações para impedir a posse do
presidente eleito Juscelino Kubits-
chek. Para coroar sua criatividade
semântica, o “contragolpe preventi-
vo” de Lott atribuiu-se o objetivo de
“retorno aos quadros constitucio-
nais vigentes”. O Brasil de então foi
bem-sucedido nesse afã, mas não a
Bolívia de hoje, que, depois da des-
tituição de Morales, e da renúncia
de todos os mandatários na linha
de sucessão, se viu à deriva, pela
ausência de um Parlamento e de
um Judiciário à altura de se faze-
rem de mediadores da crise. Vai
aqui uma advertência ao Brasil,
nestes tempos de arreganhos con-
tra o Congresso e vitupérios contra
o Supremo Tribunal Federal.
A instabilidade das instituições,
seu desrespeito por setores da socie-
dade e sua manipulação pelos de-
tentores do poder ó esse é o ponto
central, que faz da América Latina
uma região subdesenvolvida e fol-
clórica. “A importância das Consti-
tuições não impedia que vivessem
sendo reelaboradas”, escreve o lati-
no-americanista John Charles Chas-
teen, no livro América Latina ó
Uma História de Sangue e Fogo, so-
bre as primeiras décadas de exis-
tência independente dos países da
região. E acrescenta: “Todo mundo
sabia, por experiência, que cada
nova Constituição logo podia ser
cancelada, e que cada novo presi-
dente logo poderia ser substituído
por uma revolução”. Foi assim até
outro dia, e o caso da Bolívia de-
monstra que pode voltar a ser. ƒ
P.S.: o presidente Bolsonaro quer dar
o nome de Aliança pelo Brasil ao
partido que pretende criar. A aber-
rante reivindicação, por uma facção,
do monopólio do bem destinado ao
país é mais uma evidência de impul-
sos antidemocráticos.
SomoS Bolívia
“A destituição
de Morales reaviva
os clichês que
tornam a América
Latina tão típica”
ƒ Os textos dos colunistas não refletem necessariamente as opiniões de VEJA
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