INTERNACIONAL BOLívIA
74 20 de novembro, 2019
UMA NOVA CARTA PARA O CHILE
Um mês depois do início da maior cri-
se social do Chile desde o fim da dita-
dura, o presidente Sebastián Piñera
anunciou que atenderá a uma das
principais reivindicações dos mani-
festantes que não arredam pé das
ruas: uma nova Constituição. O anún-
cio feito pelo ministro do Interior,
Gonzalo Blumel, na noite do domingo
10 tem, além de reflexos práticos,
enorme efeito simbólico, por ser o
começo do fim da Carta produzida
em 1980 (embora só aprovada for-
malmente dez anos depois) e herdada
da ditadura de Augusto Pinochet
(1915-2006). O texto já sofreu cerca
de 200 alterações, mas na essência
mantém diretrizes imutáveis em seto-
res nos quais a população exige re-
formas, como saúde, educação e
Previdência Social.
Sob o impacto dos protestos e das
greves que paralisam a capital, San-
tiago, Piñera prometeu que a nova
Carta será produzida por um Con-
gresso Constituinte, com ampla parti-
cipação popular, e o texto final irá a
plebiscito. Deixou no ar se os con-
gressistas constituintes virão da
atual legislatura ou da próxima, a ser
eleita em 2021, e se o texto será ela-
borado por eles ou pelo governo, que
o encaminhará para aprovação.
Adiantou, porém, que o conjunto de
propostas para uma nova Constitui-
ção formulado no governo de sua an-
tecessora, Michelle Bachelet, e dis-
pensado quando ele assumiu vai ser
tirado da gaveta e reaproveitado.
Se de fato o Chile vier a ter uma
nova Constituição, será a primeira do
país concebida em um regime demo-
crático — as três anteriores, de 1833,
1925 e 1990, são produto de períodos
de exceção. Com apenas 13% de
aprovação e o saldo das manifesta-
ções em vinte mortos, 5 600 presos e
2 000 feridos, Piñera não para de in-
flar seu pacote de bondades: supri-
miu o aumento de tarifas de transpor-
te que começou tudo, elevou o valor
das pensões e do salário mínimo e
prometeu baixar o preço de medica-
mentos e o salário dos parlamenta-
res. Agora, aposta na nova Constitui-
ção para acalmar os ânimos.
Contrariando expectativas, Morales
fez um governo que, a certa altura, era
citado como um caso de sucesso na re-
gião. Faz dez anos que a Bolívia, um
dos países mais pobres da América La-
tina, cresce a um ritmo de 5% ao ano. A
populaÁão abaixo da linha de pobreza
diminuiu de 63% para 35%. O presi-
dente combinou programas de esquer-
da, como a nacionalizaÁão de setores
de produÁão de gás (o principal produ-
to de exportaÁão) e medidas de transfe-
rência de renda, com a abertura da eco-
nomia a investidores estrangeiros.
Mas, em contraste com o avanÁo eco-
nômico, a democracia liberal entrou
em declínio na Bolívia. Vaidoso e con-
trolador, Morales exercia poder absolu-
to sobre seu partido, o Movimento para
o Socialismo (MAS), e barrou a ascen-
são de possíveis sucessores. No primei-
ro mandato, fez aprovar uma lei impe-
dindo uma terceira reeleiÁão do presi-
dente, mas conseguiu que ela só valesse
a partir da votaÁão seguinte, que ele
venceu. Reelegeu-se mais uma vez e,
quando não poderia mais se candida-
tar, convocou um referendo em 2016
para acabar com o limite de mandatos.
Perdeu, mas não se conformou. Le-
vou o caso à Corte Suprema, que con-
trolava, e conseguiu um bizarro vere-
dicto a seu favor: impedi-lo de se can-
didatar mais uma vez iria contra o di-
reito individual das pessoas. Disputou
a Presidência pela quarta vez em outu-
bro, tentou dar um jeitinho no resulta-
do e acabou tendo de sair corrido do
país. Venezuela, Uruguai e Rússia con-
denaram o enredo que levou à renún-
cia de Morales. Brasil, Colômbia, Ar-
gentina e Estados Unidos aplaudiram
e reconheceram Jeanine Áñez como
presidente. Do México, Evo Morales
continua a dizer que foi vítima de um
“golpe cívico militar policial”. Quem
conhece o intrincado jogo de poder
em La Paz não descarta um retorno
triunfal. No realismo fantástico que
rege a política boliviana, qualquer
desfecho é possível. ƒ
revolta Onda de protesto em Santiago: o governo cede às pressões
Pablo Sanhueza/reuTerS
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