geral
86 20 de novembro, 2019
HISTórIa
Carlos DrummonD de Andrade
já tinha cantado as dores dos ombros
que suportavam o mundo, escrevera
sobre João que amava Teresa que
amava Raimundo, tratara de José,
para quem a festa acabara ó e então
se aproximou o gol 1 000 de Pelé. Nu-
ma crônica de 28 de outubro de 1969,
publicada no Jornal do Brasil, Drum-
mond escreveu: “O difícil, o extraor-
dinário, não é fazer mil gols, como
Pelé. É fazer um gol como Pelé”. Um
poeta, o maior deles, lidando com fu-
tebol? Passados cinquenta anos, difí-
cil mesmo é medir a relevância es-
trondosa daquela marca, estabelecida
em 19 de novembro, uma quarta-feira,
às 23h23 ó um mísero golzinho, de
pênalti, celebrado no Brasil com a
mesma pompa e circunstância que o
planeta oferecera à chegada do ho-
mem à Lua, exatos quatro meses an-
tes? O milésimo representava o apo-
geu do rei do futebol, o selo definitivo
de mito, antes ainda da atuação que o
coroaria eternamente, o espetacular
desempenho com a camisa da seleção
na Copa do tri, em 1970. E havia o am-
biente político, o cotidiano esmagado
pela ditadura militar ó as honrarias
em torno do camisa 10 do Santos, na-
quele contexto, seriam um respiro.
E foram. Na edição seguinte ao tento
sofrido pelo goleiro argentino Andra-
da, do Vasco da Gama, aos 34 minutos
do segundo tempo ó o Santos venceu
por 2 a 1, de virada, em partida pelo
Torneio Roberto Gomes Pedrosa, o
equivalente ao Brasileirão de hoje ó,
Antonio milenA
“Se tiveSSe vAR,
não SeRiA pênAlti”
o passeio sentimental de Pelé àquela noite de cinquenta anos
atrás, a do gol 1 000, mostra como os grandes feitos são eternos
— e como o brasil pode piorar as coisas já ruins fábio altman
VEJA circulou com uma reportagem
de capa inspirada em Pelé. O primeiro
parágrafo: “O pênalti foi o melhor pró-
logo para a grande festa. A torcida que
viu o jogo no Maracanã, quem assistiu
à partida pela televisão, quem ouviu
pelo rádio, jornalistas, fotógrafos, ci-
negrafistas, dirigentes, jogadores, to-
dos puderam preparar-se diante da
inevitabilidade do gol número 1 000”.
Como num filme de suspense, houve
longa perseguição ao ponto culminan-
te. Quinze dias antes, em jogo contra o
Santa Cruz, no Recife, Pelé havia feito
dois gols ó saíra de 996 para 998.
Apenas 48 horas depois, contra o Bo-
tafogo da Paraíba, em João Pessoa
(amistoso marcado às pressas, caça -
níquel), em 14 de novembro, ele con-
verteu um de pênalti (o 999) e termi-
nou a partida como goleiro. “Eu não
queria aborrecer os baianos, que me
esperavam para um jogo oficial, então
parei de chutar em gol”, diria Pelé.
“Tinha medo que os jogadores do Bo-
tafogo saíssem da frente da bola e a
deixassem entrar.” Contra o Bahia, em
Salvador, em 16 de novembro, placar
de 1 a 1, sem a marca do Rei. E então
veio o Maracanã. Estudiosos do fute-
bol, afeitos a histórias reversas, depois
recontariam todos os gols de Pelé, pa-
ra estabelecer uma correção que nun-
ca colou, porque estragaria a mágica:
o 1 000 teria vindo antes, talvez no
Recife, talvez em João Pessoa.
Como todo grande instante indelé-
vel, e aqueles anos 60 foram pródigos
deles, aquele gol ó o gol ó também
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