Veja - Edição 2661 (2019-11-20)

(Antfer) #1
20 de novembro, 2019 89

Tenho sempre muiTo cuidado ao falar sobre o ra-
cismo ó não que seja um assunto sem relevância, ao contrá-
rio. Dada a importância do tema, da gravidade do precon-
ceito, é preciso expô-lo com cautela, embora com firmeza.
Se eu fosse tratar de casos específicos, como os do fim de
semana na Europa (os brasileiros Taison e Dentinho, do
Shakhtar Donetsk, na Ucrânia, foram xingados no domin-
go 10), teria de me pronunciar permanentemente. É uma
chaga, é horrível, mas não me considero militante de nada.
As pessoas é que me veem assim, provavelmente pela minha
maneira de ser, ao relatar o que vivi e o que amigos meus
sofreram. Confesso que não sentia a violência do racismo
quando era pequeno. Na infância, é tudo alegria. Mesmo
quando você passa fome. O que incomodava mais era a
questão social. Sentia vergonha de ir a um shopping, porque
não tinha a roupa adequada. Mas minha mãe conta que não
podia entrar em restaurantes. Posso até dizer que o que
mais me marcou na vida não foi ter sido chamado de macaco
no estádio, como aconteceu numa partida pelo Cruzeiro no
Peru ó e não estou dizendo que foi bonito, claro que não, é no
mínimo falta de respeito imitar um animal quando um ne-
gro pega na bola. O que me marcou, e ainda me machuca, é o
preconceito no olhar. Ele pode machucar mais que palavras
agressivas. Quando eu era gerente de futebol do Cruzeiro, o
recepcionista de um hotel no Rio não quis me hospedar. Só
que eu conhecia o dono do lugar, e ele veio falar comigo. O
atendente, que era só um pouco mais claro do que eu, queria
enterrar a cabeça na terra. Foi constrangedor, e foi revela-
dor das dificuldades que atravessamos na sociedade.
No futebol, em especial, as pessoas acham que tudo é
permitido ó e igualam o preconceito a posturas naturais
como as vaias e a pressão. Talvez não tenhamos prestado
a devida atenção a esse comportamento nos campos. Des-
de o tempo do Pelé, nos anos 1960, era assim. A diferença,

a boa diferença, é que agora o problema é abordado. De
algum modo estamos evoluindo. Outro dia mesmo, o
Roger Machado, treinador do Bahia, meu irmão, fez um
discurso extremamente inteligente sobre o racismo no fu-
tebol. O que falta é ação, posturas práticas. Quando for
fazer uma entrevista para treinador, chame um negro.
Não é preciso contratar, mas entreviste, leve em conside-
ração. Vejamos o exemplo dos Estados Unidos. Lá, só 12%
da população é negra, porém a melhor apresentadora é a
Oprah, o Barack Obama foi presidente da República, e na
premiação do Oscar há vários negros concorrendo. No
Brasil, apenas falamos, não agimos. Sou a favor da políti-
ca de cotas, mas acho que erramos no nome. Se em vez de
“cotas” fosse “oportunidades”, seria mais adequado. Seria
absurdo e improvável alguém questionar o direito à opor-
tunidade do negro, da mulher, do idoso.
E no entanto reconheço que, ainda que mudássemos a
nomenclatura, mesmo que começássemos a agir, haveria
imensa dificuldade de acabar com o racismo. O nó é que
ele anda de mãos dadas com a ignorância, e ignorância é
difícil de combater. Você pune um cara, ele vai preso, mas
não muda. Vivemos uma era em que o ódio só aumenta.
Vemos coisas que não víamos há dez anos. Pai matando
filho, estuprando filha, casais se matando. E como, nesse
ambiente, conseguiríamos diminuir o espaço para o pre-
conceito? Posso estar sendo pessimista, mas não consigo
realmente imaginar um mundo no qual, dentro de cinco
anos, respeitemos a cor de pele, a opção sexual, o pensa-
mento político. Tenho de ser realista: não há muita saída,
e, apesar de o futuro ser nebuloso, o único caminho é pu-
nir e vigiar, sem parar. E sobretudo abrir espaço real para
os negros no cotidiano profissional. É

Depoimento dado a Alexandre Senechal

o que me machuca é o


preconceito no olhar
O ex-jogador Tinga, de 41 anos, admite pessimismo depois dos recentes episódios de racismo no futebol europeu

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