Sabor Club - Edição 35 (2019-12)

(Antfer) #1

54 | Sabor. club [ ed. 35 ]


Há uma certa tensão na atmosfera do auditório lotado.
Afinal, o doutor em sociologia Carlos Alberto Dória,
autor de obras importantes sobre a nossa cultura
culinária vai falar. Sua mais recente publicação
A Culinária Caipira da Paulistânia, com o chef Marcelo
Corrêa Bastos, apresenta uma tese robusta na qual ele diz
que a gastronomia mineira é, de fato, uma apropriação da comida
caipira que espalha suas raízes pelos estados de São Paulo, Minas
Gerais, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa
Catarina, parte do Rio de Janeiro, do Espírito Santo e do Rio
Grande do Sul, numa área chamada de Paulistânia, de onde vem
o caipira cuja “história é bem homogênea, com trajetória rumo às
minas de ouro e com formação familiar em volta de sítios”.
Imagina o que isso significou para um povo tão orgulhoso da
sua comida que há até um dia nacional para ela. “Antes de dizer
que história é essa gostaria de fazer algumas perguntas”, diz ele.

O que nós realmente queremos preservar? Se falamos em
patrimônio imaterial, como os processos se articulam
para chegarmos até ele?
As respostas passam por valorizar, acima de tudo, a cultura
(que pode originar outra ao longo do tempo) e elementos que vão
muito além das receitas. Dória coloca de forma taxativa: “É preciso
abandoná-las como centro do fazer culinário”.
Suspiros. Para o mestre, há muito mais a ser considerado,
aspectos que vão muito além do gosto. E eles estão nos ingredientes,
nos caminhos que levam a eles, em mergulhos antropológicos que
normalmente revelam histórias e comportamentos fascinantes.
“A comida vai além do paladar, traz adstringência, picância, textura.
E, muitas vezes, isso tem a ver com o que se atribui de calor a ela.”
A reflexão, invariavelmente, leva a teoria polêmica da “culinária
da Paulistânia” e o tanto que está por trás dela. Como, por exemplo,
uma questão de delimitação política de território. Num tempo em
que se pensava num Brasil dividido, as bitolas dos trilhos de trem
tinham tamanhos diferentes em Minas e São Paulo. Para que, em

caso de guerra, um comboio não entrasse no
estado do outro.
A partir desta colocação, é natural que houvesse a
apropriação de algo tão relevante como o saber culinário.
O que então determina a diferenciação definitiva é o
orgulho em ser mineiro, por que ele é autêntico e tradicional,
contra a vergonha em ser caipira, figura antagônica ao modernismo
tão admirado na capital paulista.
Vani Pedrosa, historiadora do Senac, que pouco antes,
havia apresentado com satisfação as entranhas do pensamento
gastronômico no seu estado, concorda com a ideia da autoestima
do mineiro em relação as suas origens. Mas garante que a
similaridade das cozinhas da Paulistânia cuja base material tem
berço indígena, com milho, abóbora, mandioca, amendoim e
feijão, passa a ter características determinantes que a diferem.
Como o ciclo do ouro, que levou tanta gente para o seu

estado, muito além dos portugueses, com seus porcos e galinhas.
Ela defende que judeus e ciganos trouxeram técnicas de
panificação e a preparação com sangue animal. E que a bonança
que ergueu igrejas acabou levando ao saber para feitura das
panelas de pedra – que muda a temperatura e cocção da comida
e tudo mais que vem a partir disso. Então vêm os doces, vinhos
e queijos feitos nos conventos e até os molhos caudalosos que
chegaram com os sacerdotes franceses.
Dória ouve respeitosamente mas mantém o que defende no
seu livro. E resume: qual é a diferença entre o virado paulista e
o tutu mineiro? A plateia se arrepia, para dizer o mínimo. Mas
ele não deixa a controvérsia ganhar corpo e arremata: sim, há
determinadas adaptações locais aqui e ali. O que é inadmissível,
culturalmente falando, é a distorção dos nossos clássicos com a
introdução de ingredientes não nativos e a alteração no modo
de preparar. Ela, especialmente, nos leva a extinção de métodos
milenares. Um grande prejuízo, afinal, para o que chamamos de
patrimônio imaterial. “Quando vir algo assim, suspeite. E rejeite.”

O que fica e o


que se transforma


As tradições culinárias e o
Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade

Com Vani Pedrosa (economista e historiadora, Senac, MG)
>> Carlos Alberto Dória (doutor em sociologia, especialista em cultura culinária, São Paulo, SP)
>>.TLER
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O que nós realmente queremos preservar? Se falamos em patrimônio imaterial,
como os processos se articulam para chegarmos até ele? As respostas passam por valorizar,
acima de tudo, a cultura e elementos que vão muito além das receitas
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