National Geographic - Portugal - Edição 225 (2019-12)

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Os sherpas que assistiram à cena descreve-
ram-na como uma massa negra de água descen-
do lentamente sobre o vale, acompanhada por
um estrondo semelhante ao de vários helicópte-
ros e o cheiro de terra acabada de lavrar. A cheia
destruiu 14 pontes, cerca de 30 casas e uma nova
central hidroeléctrica. Segundo alguns relatos,
morreram várias pessoas. Numa reviravolta be-
nevolente, a cheia ocorreu durante um festival
de celebração das colheitas, cuja época se apro-
ximava, motivo pelo qual poucos moradores
estavam junto do rio naquele dia, o que salvou
indubitavelmente vidas.
“Sempre houve GLOF”, diz Alton Byers. “Mas
nunca tivemos tantos lagos perigosos num perío-
do tão curto. Sabemos pouco sobre eles.” A cheia
do lago Dig chamou a atenção para os riscos nou-


tros lagos dos Himalaia. Os principais eram o lago
Rolpa, no vale Rolwaling (no Nepal) e o lago Imja,
junto do sopé do Evereste, a montante de várias
aldeias ao longo do popular trilho de caminhada
até ao acampamento-base do Evereste.
No fi m da década de 1980, equipas de cientistas
começaram a estudar estes dois lagos. Imagens
recolhidas por satélite revelaram que o lago Imja
se formara após o lago Dig na década de 1960 e
estava a expandir-se a um ritmo alarmante. Um
estudo estimou que, entre 2000 e 2007, a área da
sua superfície aumentara quase dez hectares.
“Um dos problemas dos lagos glaciares é o
facto de os riscos estarem sempre a mudar”, diz
Paul Mayewski, director do Instituto das Altera-
ções Climáticas da Universidade do Maine e líder
da expedição organizada em 2019 pela National
Geographic Society e pela Rolex para estudar os
glaciares do Nepal. Muitas moreias que susten-
tam lagos glaciares estão naturalmente reforça-
das por pedaços de gelo que ajudam a estabilizar
a estrutura. Se o gelo derreter, uma moreia outro-
ra sólida pode soçobrar.
Há outras ameaças escondidas sob o gelo. Com
o degelo, grandes grutas podem esvaziar-se den-
tro de um glaciar em recuo e encher-se de água.


Por vezes, estes reservatórios ocultos estão uni-
dos a lagos de superfície através de condutas
existentes no gelo. Quando uma via de fuga do re-
servatório derrete subitamente, dezenas de lagos
interligados podem ser drenados em simultâneo,
convergindo num enorme dilúvio. Embora mais
pequeno e menos devastador do que os GLOF,
este tipo de evento – conhecido pelos cientistas
como uma cheia de condutas englaciar – ocorre
com mais frequência. Pouco se sabe sobre eles.
“Não é fácil descobrir como a água corre no inte-
rior dos glaciares”, afi rma Paul Mayewski.
Por enquanto, os GLOF continuam a ser a nos-
sa maior preocupação. Alton Byers aponta para a
moreia do sopé do glaciar Khumbu, onde existe
actualmente um aglomerado de lagoas. “É o pró-
ximo grande lago”, diz, lembrando que a moreia

se encontra acima da aldeia de Tugla, junto de
um trilho. “É apenas uma questão de tempo até
se transformar num risco potencial.”
É difícil avaliar o perigo sem realizar opera-
ções de campo, que exigem vários dias de cami-
nhada até aos lagos distantes, mas um estudo
conduzido em 2011 identifi cou 42 lagos no Ne-
pal com risco de cheia elevado ou muito elevado.
Em toda a região dos Grandes Himalaia, o seu
número pode ascender a mais de uma centena.

OUTRO PAÍS COM UM LONGO HISTORIAL de proble-
mas face ao desaparecimento dos lagos glaciares
é o Peru, um país montanhoso que perdeu cerca
de 50% do seu gelo glaciar nos últimos 30 a 40
anos. Milhares de pessoas já morreram em GLOF.
Uma cheia devastadora, com origem no lago Pal-
cacocha, arrasou um terço da cidade de Huaraz,
matando cerca de cinco mil pessoas. Foi o
momento em que os peruanos começaram a con-
ceber formas pioneiras de drenar parcialmente os
lagos glaciares. Actualmente, dezenas de lagos do
Peru foram represados e o seu volume foi reduzido,
criando centrais hidroeléctricas e canais de irriga-
ção. No entanto, a implementação de tais soluções
no Nepal enfrenta grandes obstáculos.

Os glaciares contêm cerca de 3.850 quilómetros cúbicos de água.


A questão imediata que se coloca na região é:


quando os glaciares derreterem, para onde irá toda a água?

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