National Geographic - Portugal - Edição 225 (2019-12)

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Tudo isto seria decretado pelo Sol Eterno e pela
Lua, mas só esta referência correspondia ao texto
das inscrições. “O resto foi um golpe de marketing
político”, diz, com uma gargalhada, o historiador
José Cardim Ribeiro, fundador e primeiro direc-
tor do novo Museu Arqueológico de São Miguel de
Odrinhas (MASMO). “Tratou-se de uma interpreta-
ção erudita, mas certamente política para bajular o
rei. Foi tão bem-sucedida que a profecia falsa foi re-
petida em livros do século XVI e do início do século
XVII, incluindo no prefácio de Nostradamus. Já
recolhi cerca de oitenta menções. Poderá parecer
ridículo hoje, mas na época teve grande impacte.”
Na verdade, os operários de Dom Manuel ti-
nham exposto vestígios de um velho culto da An-
tiguidade, praticado no Alto da Vigia e caído em
esquecimento à medida que o paganismo romano
dera origem ao monoteísmo do final do império.
Outros autores eruditos do século XVI não toma-
ram à letra a farsa de Sículo e, nos anos seguintes,
deram-se ao trabalho de viajar até este ponto ermo
do território para ver as inscrições. Na Antigui-
dade, note-se, o mundo conhecido terminava no
cabo da Roca e no mar revolto que o rodeia.
No local, o ruído da rebentação constante em-
bala o caminhante à medida que este perscruta o
horizonte, abrangendo a reentrância do cabo da
Roca à esquerda e o oceano infinito em frente.
À direita, um vale e a praia separam o Alto da Vi-
gia das urbanizações da Praia das Maçãs. Giran-
do para trás, avista-se a serra de Sintra, ou monte
da Lua, como era conhecida no período romano.
A nossos pés, estende-se uma falésia quase ver-
tical até ao mar. Gozando o momento, Cardim
Ribeiro dispara: “Não encontra melhor local para
implantar um santuário.”
Era possível no século I d.C. navegar pelo estei-
ro que então corria na actual praia e ter acesso ao
local por via marítima ou terrestre. Em noites lím-
pidas, o Sol põe-se no oceano e a Lua por trás da
serra, iluminando subitamente a região como se
todos os interruptores do Palácio da Pena se ligas-
sem. Para um romano, deveria parecer o local ideal
para implantar um santuário de culto ao Oceano.

A


S ARAS PERMANECERAM NO LOCAL nos
anos seguintes à descoberta de 1505. “Em
certos aspectos, foi a primeira descoberta
arqueológica portuguesa”, diz Cardim
Ribeiro. “Embora acidental, foi documen-
tada e o rei deu ordem para deixar as
pedras inúteis, ou seja, para não as reutili-
zarem noutros contextos.”

O primeiro visitante de que há notícia foi o fu-
turo bispo de Viseu e futuro embaixador de Dom
Manuel I junto do papa, Dom Miguel da Silva.
Recém-chegado de Itália em 1512, vinha imbuído
do espírito do Renascimento e do culto das anti-
guidades clássicas. A curiosidade levou-o ao Alto
da Vigia e ali reproduziu, com rigor, duas das três
inscrições. “A terceira já estaria ilegível”, comenta
a arqueóloga Teresa Simões, actual directora do
MASMO. As duas inscrições reproduzidas davam
conta de consagrações ao Sol e à Lua e ao Sol Eter-
no e à Lua, referências então desconhecidas no
estudo da mitologia romana.
Tal como hoje qualquer visitante ilustre de Sin-
tra sobe ao Palácio da Pena, os ilustres do século
XVI desfilaram perante as aras romanas. O infante
Dom Luís, o irmão erudito de Dom João III (sobre
quem se dizia “Teve tudo, só lhe faltou ser rei”),
foi uma dessas figuras. Visitou igualmente o local
cerca de 1540 e conduziu lá outra figura notável
da época, o jovem humanista Francisco de Holan-
da, regressado de Itália. Devemos a este talentoso
escritor e desenhador uma peça fundamental do
enigma da Praia das Maçãs.

V


ENHA, VOU MOSTRAR-LHE O SÍTIO exacto
onde Francisco de Holanda se sentou para
desenhar o santuário”, brinca José Cardim
Ribeiro, enquanto nos conduz entre a vege-
tação quase rasteira mas densa do Alto da
Vigia. O humanista não se contentou com
a observação do sítio arqueológico: dese-
nhou-o, implantando na paisagem um círculo de 16
aras, com um disco central e talvez a sugestão da
Lua na margem e o Sol no horizonte. Naturalmente,
Cardim Ribeiro não encontrou o local exacto da
observação do humanista (embora não resista a
brincar com a nossa equipa de ilustradores, lem-
brando-lhes a responsabilidade de serem os primei-
ros, depois de Francisco de Holanda, a reproduzirem
o santuário romano), mas aponta para o local que
permitiu a redescoberta do sítio, já no século XX.
O recorte da costa na margem direita do dese-
nho corresponde ao recorte actual da paisagem.
Contrapondo a reprodução de Holanda à observa-
ção contemporânea, o arquitecto Jorge Segurado
propôs, em 1970, que o Alto da Vigia corresponde-
ria ao sítio onde apareceram as aras manuelinas.
Não se conseguiu então fundamentar a hipótese,
mas a conjectura pairou na mente de eruditos
como o então estudante José Cardim Ribeiro.
Tinham então passado quase cinco séculos des-
de a descoberta acidental e os peritos dividiam-se.
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