National Geographic - Portugal - Edição 225 (2019-12)

(Antfer) #1
ALTODAVIGIA 59

Para os epigrafistas, parecia evidente que as trans-
crições do bispo e, mais tarde, de André de Resen-
de teriam de corresponder a achados concretos;
para os historiadores de arte, os desenhos de Fran-
cisco de Holanda não eram necessariamente cor-
respondentes a um sítio físico e palpável. Desde o
século XIX que epigrafistas famosos como Emílio
Hübner tinham vindo a Sintra com o propósito ex-
plícito de deslindar o mistério e identificar a fonte
das aras. Regressaram a casa com as mãos vazias.
A memória colectiva é, aliás, um processo curio-
so – preserva alguns traços e esquece outros, sem
um critério aparente. O sítio do Alto da Vigia con-
tinuou a ser visitado no século XVI, mas as aras
foram desaparecendo. “As pedras andam”, brinca
Teresa Simões. “Não damos por isso, mas elas são
movimentadas pelas razões mais incríveis e avan-
çam de aldeia em aldeia.” Quando André de Re-
sende visitou o santuário, aproximadamente em
1540, já uma das aras fora deslocada para a ermida
de Nossa Senhora de Melides, em Colares. Sabe-se
que a outra terá sido levada em data incerta para o
antigo convento da Pena e hoje deverá estar inte-
grada algures nos alicerces do Palácio.
A terceira, a que estava quase ilegível no século
XIX, foi encontrada por Teresa Simões na década
de 1990 num jardim privado da Assafora a servir
de pé de mesa. Foi recuperada para o MASMO e,
graças ao Modelo Residual Morfológico do in-
vestigador Hugo Pires, tornou-se possível ler que
também está consagrada ao Sol e ao Oceano.


N

O FINAL DO SÉCULO XVI, caíra sobre o
episódio de 1505 uma das típicas brumas
sintrenses. O último viajante ilustre a
observar as epígrafes deverá ter sido
Honorato Juan, o preceptor de Dom
Sebastião. Depois, desaparecem as refe-
rências concretas na documentação. Car-
dim Ribeiro tem uma explicação concreta para essa
obscuridade: “Para compreender, tem de pensar na
‘História Natural’ de Plínio, o Velho”, diz. A obra
relata um episódio ocorrido em meados do século I,
durante o qual os cidadãos de Olisipo enviaram uma
embaixada ao imperador Tibério, informando o
soberano de que, numa grande gruta do litoral da
cidade, aparecera um tritão a tocar búzio. O caso foi
integrado nos chamados mirabilia, ou seja, as obser-
vações extravagantes de Plínio. “Mas e se não tiver
sido uma extravagância?”, pergunta o historiador.
“Certamente não existem tritões nem Tibério rece-
beria uma embaixada de bacocos a falar de tritões.
Inclino-me para a hipótese de a embaixada ao


imperador ter incluído um cortejo alegórico, onde,
aí sim, a figura de um tritão tocaria búzio. A repre-
sentação teria agradado aos romanos e Plínio recor-
dá-la-ia com um sorriso nos lábios, numa ironia que
nos escapou vinte séculos depois.”
Fosse como fosse, o episódio do tritão foi re-
cuperado por outro humanista, Damião de Góis.
Na sua “Descrição de Lisboa”, Góis recupera o
episódio, dando-lhe algum crédito e situando o
acontecimento no Fojo, o grande algar que exis-
te na praia da Adraga, a sul da Praia das Maçãs.
“É um algar monstruoso que se abre aos nossos
pés e por onde o mar avança”, diz Cardim Ribei-
ro. “A partir da obra de Damião de Góis, o Fojo
passou a ser o sítio de romagem dos eruditos, a
ponto de, no primeiro mapa geral de Portugal (de
Álvaro Seco, em 1570), a região de Lisboa se limi-
tar aos topónimos de Lisboa, Cascais, Roca, Sin-
tra, Colares e... ao minúsculo Fojo.” A memória
do Alto da Vigia desvaneceu-se até Jorge Segura-
do publicar, em 1970, as gravuras de Francisco de
Holanda, cujos originais permanecem no Palácio
da Ajuda, propondo que o sítio seria real e corres-
ponderia ao Alto da Vigia.

O


USO DO SOLO MUDOU na região de Sintra,
mas, no Alto da Vigia, o tempo parece
correr a uma velocidade mais suave. Há
fotografias do início do século XX com
ovelhas a pastar no local e, pouco depois,
foram plantadas vinhas no terreno. Que
se saiba, porém, o solo nunca foi revol-
vido por actividades humanas no último milénio.
Na derradeira metade do século XX, as tentativas
de mitigação da erosão levaram à plantação de
vegetação rasteira. Quem adivinharia que ali se
situaria um pedaço relevante da história imperial?
Um dia, na década de 1980, Cardim Ribeiro
conduziu uma sondagem informal no local. “Foi
uma pequena patifaria”, diz, com mais uma so-
nora gargalhada. “Num ponto muito próximo da
vigia manuelina, fizemos uma sondagem de um
metro por um metro. Hoje, sabemos que passá-
mos a centímetros de um recinto islâmico.” Mais
tarde, com uma retroescavadora disponível para
uma obra municipal, conduziu-se nova sonda-
gem informal noutro ponto, “que só deu areia”.
As imagens posteriores de geofísica, realizadas
em 2011, confirmam que uma vez mais a sonda-
gem estivera a curta distância de encontrar pro-
vas da existência do santuário, como um médico
realizando biopsias que falham por milímetros o
tecido maligno.
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