National Geographic - Portugal - Edição 225 (2019-12)

(Antfer) #1
62 NATIONAL GEOGRAPHIC

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OS ÚLTIMOS ONZE ANOS, as escavações
avançaram no Alto da Vigia. Nos contex-
tos romanos, emergiu uma edícula, um
nicho oratório, bem com um fragmento
de um extenso lintel e um bloco rusti-
cado de construção, que indiciam a con-
vivência, no morro, de pequenas
construções com um grande templo. Com perse-
verança, a equipa de Alexandre Gonçalves encon-
trou mais inscrições dedicadas ao Sol e ao Oceano,
consolidando a certeza de que, no extremo ociden-
tal do império, existiu um culto destas divindades.
Uma das provas da singularidade deste san-
tuário certamente sancionado pelo poder im-
perial são as quatro inscrições consagradas ao
deus Oceano já encontradas. “Correspondem
ametade de todas as conhecidas no império”,
explica Cardim Ribeiro. “Há cultos do Oceano
na Grã-Bretanha, no Reno e uma referência, na
narrativa de Alexandre, o Grande, à consagração
da divindade à chegada ao Indo. É portanto uma
divindade rara dos limites do mundo conheci-
do.” A foz de Colares corresponderia ao limite
ocidental do planisfério romano.
As oito aras conhecidas (que, com o lintel e
a placa com o carmen totalizam dez inscrições)
distribuem-se entre a época de Adriano (no
início do século II) e a de Aureliano ou Probo
(em cerca de 275-280 d.C.). Sugerem que, du-
rante cerca de um século e meio, praticou-se
aqui um culto, sacrificando animais de carac-
terísticas específicas ao Oceano, à Lua e ao Sol.
Às divindades masculinas, ofereciam-se machos
e às femininas fêmeas. Existia também uma
hierarquia dos animais a dedicar, com destaque
para os cavalos (quando existiam) e para os bois.
Os animais dedicados a divindades celestes se-
riam brancos. Os deuses do submundo recebe-
riam animais escuros. “Não sabemos em con-
creto o que sacrificariam em honra de Oceano,
pois não há paralelos no império”, diz Cardim
Ribeiro. “Ao Sol, seria seguramente um touro
branco, com os cornos pintalgados de dourado.”
A informação das dedicatórias tem sido particu-
larmente notável. Todas as epígrafes em honra de
Oceano foram feitas por governadores da Lusitâ-
nia, representantes do poder imperial na província.

Em 1540, o humanista
Francisco de Holanda
visitou o local, descre-
veu-o e desenhou-o

(à direita). As estampas
(publicadas em Espanha)
só foram conhecidas
em Portugal em 1970.

O momento Eureka aconteceu nas instalações
do Museu. Frustrada com a incapacidade para
provar a existência real do santuário romano, a
equipa recapitulou todos os fragmentos da his-
tória de que dispunha: as cartas de Valentim Fer-
nandes, as transcrições dos eruditos, os desenhos
de Francisco de Holanda. “Lembro-me de per-
guntar à Teresa o que andariam os trabalhadores
de Dom Manuel a fazer naquele local quando en-
contraram as aras. Só poderiam estar a construir
a vigia, embora se pensasse entre os historiadores
que as vigias desta costa seriam filipinas. Colocá-
mos por isso a hipótese de as aras terem aparecido
precisamente no local escolhido para a implanta-
ção da vigia. Esse, portanto, deveria ser o primeiro
local a escavar”, comenta Cardim Ribeiro.
Em 2008, no contexto de trabalhos arqueoló-
gicos para viabilizar um passadiço previsto para
o Alto da Vigia, a equipa do MASMO, dirigida
por Alexandre Gonçalves, iniciou as escavações.
Como nas matrioskas russas, encontrou uma
surpresa dentro de outra surpresa. Desmontada
a vigia de Dom Manuel, começaram a aparecer
construções estranhas, de época islâmica. “Não
percebemos logo o que era”, lembra o arqueólogo.
“Quando identificámos uma mesquita, um segun-
do edifício anexo de função utilitária e uma necró-
pole associada com vários sepultamentos orienta-
dos pelo rito islâmico, fez-se luz: era um ribat, um
posto de defesa da costa e de recolhimento espi-
ritual.” Trata-se aliás do segundo ribat conhecido
em Portugal e o terceiro na Península Ibérica.
Os arqueólogos envolvidos em trabalhos ár-
duos, muitas vezes presos por arneses quase no
limite da falésia, começaram a atrair curiosos.
Certo dia, encontrou-se uma ara romana implan-
tada na estrutura muçulmana. “Estava virada ao
contrário”, lembra Alexandre Gonçalves. “Virá-
mo-la e ficámos encantados. Dizia ‘Sol e Oceano’
na primeira linha.”
“Essa ara descodifica tudo”, prossegue Teresa
Simões. “Contém uma inscrição claramente do
santuário e está em contexto islâmico de reutiliza-
ção.” A equipa acabara de comprovar que o Alto da
Vigia fora de facto o local de implantação de um
santuário romano e, meio milénio depois, aco-
lhera um ribat islâmico. “Uma vez mais, faz sen-
tido a escolha do local”, comenta Cardim Ribeiro.
“O oceano é, na época, um deserto, um espaço não
franqueado, propício à reflexão e ao recolhimento
espiritual. As estruturas que encontrámos estão
no último local possível para edificações. Para a
frente, só fica a falésia.”

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