Público - 01.11.2019

(Ron) #1
Sexta-feira, 1 de Novembro de 2019

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Historiador
CONSOANTE MUDA
O Santo e o Sultão
H
á oitocentos anos e um mês
ocorreu um dos encontros
mais estranhos e importantes
da história da humanidade, e
eu não vi em lado nenhum na
imprensa mundial referência
a essa efeméride. Também a falhei
aqui nesta coluna, mas com a boa
desculpa de que a escrita destas
crónicas esteve suspensa durante o
mês de setembro. Vocês me dirão se
trazê-la agora aqui é apenas um dos
meus caprichos de historiador ou se
a história que vos vou contar tem
uma relevância acrescida para o
nosso tempo.
Em setembro de 1219, num
mundo muito diferente, num tempo
muito diferente, na época da Quinta
Cruzada, dois homens muito
diferentes do comum
encontraram-se. Um deles era um
ainda jovem italiano, de família rica
e ex-militar, Giovanni di Petro di
Bernardone, conhecido entre os
frades apenas pelo seu nome
religioso de Francisco, da cidade de
Assis. O futuro S. Francisco de Assis.
Rui Tavares
O outro homem chamava-se
Al-Malik al-Kamil Nasir ad-Din
Muhammad, ou ainda Malique
Camil Nácer Adim Abu Almaali
Maomé, ou simplesmente Al Kamil.
Entre os europeus era conhecido
como Meledino, um nome que
rimava e fazia lembrar o do seu
temido tio Saladino, o grande chefe
militar curdo que em nome dos
muçulmanos se opôs aos cruzados
cristãos. Meledino, ou Al Kamil,
prolongou a linhagem prestigiosa
dos seus antepassados como Sultão
do Egito, e Senhor de Jerusalém,
que governava a partir do Cairo.
Francisco de Assis era um
seguidor da Cruz, que queria viver
segundo o exemplo de Cristo e que
tinha abandonado as fortunas da
sua família para viver na pobreza
como frade mendicante. No
entanto, sabemos que quando uma
relíquia da cruz passou por perto
dele para excitar os jovens cristãos a
mais uma cruzada, Francisco não
foi ver a cruz, talvez porque não
aprovava o Æm guerreiro para que
ela estava a ser usada. Em vez disso,
Francisco imaginou um plano mais
ambicioso, para não lhe chamar
completamente irrealista. Iria ele,
pessoalmente, um frade que pouca
gente conhecia, ao Cairo. Pediria
audiência ao Sultão Meledino. E
convertê-lo-ia ao cristianismo,
um homem muito mais importante
do que ele?
Sabemos, contudo, o que não
aconteceu. Nenhum dos homens
converteu o outro. Não perderam
aliás muito tempo com esse projeto.
Ambos terão reconhecido
reciprocamente que Deus já estava
com o outro, e deixaram-se em paz
com as suas escolhas religiosas de
bom muçulmano sunita e bom
cristão latino.
E é isto. É por isso que este
encontro é historicamente tão
importante e por isso que ele
deveria estar a ser lembrado agora
que faz oitocentos anos. Porque ele
nos recorda que mesmo numa
época de tribalismo desenfreado e
violentíssimo como foi o das
cruzadas, houve gente de ambos os
lados que via a coisa de outra
maneira e reconhecia que não
precisava de converter o outro —
nem massacrá-lo — para viver em
harmonia. Se isto é apenas uma
efeméride sem importância, é
porque já não precisamos da louca
coragem de gente como Francisco
de Assis e Malik Al-Kamil. Se não, é
porque ainda precisamos deles.
Malik Al-Kamil era um governante
especial. Uma vez apanhou um
exército cristão numa armadilha,
bastando-lhe mexer com o nível das
águas do Nilo para que os cruzados
Æcassem enterrados em lama e lodo
até aos joelhos. O sobrinho de
Saladino poderia facilmente tê-los
cortado em pedaços. Em vez disso,
libertou-os, alimentou-os e
mandou-os embora. De outra vez
permitiu aos cristãos que Æcassem
com Jerusalém no quadro de mais
um dos vários tratados de paz que
lhes propôs, em geral rejeitados
porque considerados inconcebíveis.
Talvez só mesmo alguém como
Francisco de Assis o pudesse
entender, e ele ao outro. Talvez eles
vissem mais fundo e entendessem
que cristianismo e islamismo (e
judaísmo) eram apenas outros
tantos prismas através dos quais ver
o mesmo monoteísmo.
Esta história diz-nos também que
as ideias têm consequências.
Gerações depois, gente como António
de Lisboa ou os Mártires de Marrocos
tentaram imitar Francisco de Assis,
indo a território muçulmano, sem
armas, converter os “inÆéis”, em
geral sem sucesso e correndo risco de
vida. Talvez não tivessem entendido
que o mais importante para Francisco
e Al-Kamil não era converterem-se.
Era conversarem.
Foi há oitocentos anos e um mês,
e poderia fascinar-me mais um mês
e oitocentos anos, se os tivesse.
BARTOON LUÍS AFONSO
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Esta informação não dispensa a consulta da lista oficial de prémios Lotaria popular 72406 1.º Prémio50.000€
poupando a humanidade à tragédia
de mais uma cruzada.
Por incrível que pareça, foi
mesmo isso que Francisco de Assis
fez. Meteu-se num barco e foi para o
Cairo. A missão tinha tudo para
correr mal. O mais certo é que ao
chegar a terras comandadas por
muçulmanos (embora houvesse
uma grande proporção de
população cristã, os chamados
coptas, no Egito de Meledino) o
frade Francisco fosse feito
prisioneiro, escravo, ou diretamente
mártir. Por estranho que pareça,
nada disto aconteceu. O sultão Malik
Al Kamil achou o visitante
intrigante, e decidiu recebê-lo.
Talvez tenha achado que poderia ele
convertê-lo ao islamismo. Seja como
for, tratou-o bem. Conversaram
muito. Estiveram juntos vinte dias. E
depois Francisco de Assis voltou à
Europa.
Não sabemos o que aconteceu
durante esses vinte dias. Ninguém
tomou notas. Os dois homens terão
conversado. E que mais? Jogado
xadrez? Tomado refeições em
conjunto? Ninguém sabe. Mais tarde
este foi um dos aspetos da vida de S.
Francisco de Assis que os seus
seguidores não enfatizaram.
Quanto aos muçulmanos, porque
haveriam eles de lembrar um jovem
italiano que veio para ver o Sultão,
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