Público - 01.11.2019

(Ron) #1
14 | ípsilon | Sexta-feira 1 Novembro 2019

pirado, menos convicto: a sua aber-
tura total à ficção levanta, paradoxal-
mente, dúvidas sobre a verosimi-
lhança daquilo que estamos a ver —
embora não tenhamos os mesmos
problemas com o crânio misterioso
descoberto por Jeison em Ve n t os d e
Agosto ou com o vaqueiro fashionista
de Juliano Cazarré em Boi Neon. Pa-
rece faltar algo para “ancorar” o novo
filme, como se a descolagem de Di-
vino Amor em direcção à alegoria, no
seu terço final, tivesse algo de satírico
ou de provocador em vez de genui-
namente questionador.
E, contudo, esse mesmo final é
uma espécie de “volta na ponta” que
coloca em questão toda a lógica estri-
tamente regulamentada da seita que
dá nome ao filme, que abre um es-
paço de liberdade e evasão que a pró-
pria sociedade não permite ou dificil-
mente admite. Como se só a partir de
dentro pudéssemos terminar com os
problemas (é complicado, por exem-
plo, não o relacionar com a História
da Aia de Margaret Atwood e com a
sua recente sequela literária, Os Tes-
tamentos). E é esse final de ousadia e
desafio, cuja sinceridade está mesmo
na fronteira do incrédulo, que torna
Divino Amor num filme sobre as pos-
sibilidades do(s) corpo(s) em transfor-
mação como o eram os anteriores,
sobre o corpo como “salvador” que
contém em si o potencial de um novo
destino, de um novo futuro.
Divino Amor é inevitavelmente dos
nossos dias, para os nossos dias, e
encerra-se com as mesmas portas
abertas de Ventos de Agosto e Boi
Néon. Só que, aqui, elas só se abrem
mesmo no fim, e deixam água na
boca.

N


uma entrevista de 2016 a
propósito do seu filme ante-
rior, Boi Néon, o realizador
brasileiro Gabriel Mascaro
(Recife, 1983) falava de um
cinema que “não tenta fe-
char” o mundo em que foi cons-
truído: “É-me muito difícil criar um
fim para essas personagens, porque
são vidas muito complexas em trans-
formação, e encontrar um desfecho
para elas seria injusto e deso-
nesto.”
O seu seria, então, um cinema da
ambiguidade, apanhado entre a “efa-
bulação e o contacto com o real”.
Como convém a alguém que come-
çou pelo documentário (quatro lon-
gas entre 2008 e 2013), que reivindi-
cava a inspiração de Joris Ivens, e
cuja primeira longa de ficção, Ventos
de Agosto (2014), forçava já um cho-
que entre os corpos e oreal filmado
“em directo” e a escrita sobreposta,
de maneira ao mesmo tempo natu-
ralista e surreal, a esse real.
O que é que tudo isto tem a ver com
a história de uma esposa beata que,
no Brasil de 2027, procura desespera-
damente engravidar de um marido
infértil? E que parece erguer um es-
pelho distorcido ao Brasil “evangé-
lico” e autoritário dos nossos dias?
Acontece que essa história, Divino
Amor de seu nome, é a terceira ficção
do pernambucano Mascaro depois de
Ventos de Agosto (a concurso em Lo-
carno 2014) e Boi Néon (a concurso
em Veneza 2015). Estreado em Janeiro
em Sundance, mostrado entre nós no
último IndieLisboa, Divino Amor é a
produção mais ambiciosa do realiza-
dor; e também a etapa seguinte num
cinema que mantém intacta essas

Com a estreia


de Divino Amor


e Ventos de Agosto


e a reposição


de Boi Néon,


é o momento


de olhar para


um dos mais


intrigantes


realizadores


brasileiros


contemporâneos


e as


possibilidades


que o seu cinema


procura abrir.


Jorge Mourinha


As portas


abertas


de


Gabriel


Mascaro


coordenadas de ambiguidade num
percurso que, iniciado no interior
remoto, se tem aproximado progres-
sivamente da metrópole.
Os três filmes podem agora ser
vistos em conjunto numa série de
sessões no Trindade, no Porto, coin-
cidindo com a estreia quase confi-
dencial de Divino Amor em Lisboa
(Amoreiras), Porto (Trindade) e
Coimbra (Almashopping). Ve n t os d e
Agosto nunca chegou a ter estreia
comercial entre nós, apesar de exi-
bições pontuais, enquanto Boi Néon
teve uma breve passagem pelo cir-
cuito de salas em 2016 (é, aliás, inex-
plicável o desinteresse português
pela nova geração do cinema brasi-
leiro, que tem sido acompanhada
com entusiasmo em festivais mas
que, quando chega a sala, não con-
segue encontrar público).
O pretexto, dizíamos, é a estreia
de Divino Amor – filme que não é pos-
sível ver sem pensar no Brasil con-
temporâneo, na polarização social e
política que culminou no impea-
chment de Dilma Rousseff e na elei-
ção de Jair Bolsonaro. Essa compa-
ração é inevitável, sobretudo quando
se sabe o salto que o cinema brasi-
leiro deu nos últimos anos graças aos
sistemas estatal e federal de apoios,
e o fechamento que está a acontecer
desde a eleição deste governo de ex-
trema direita, com financiamentos
suspensos e um geral desprezo pelas
artes no exacto momento em que o
cinema brasileiro atinge um pico de
reputação internacional invejável.
Divino Amor é dos filmes brasilei-
ros recentes que mais engajam com
este estado de coisas: no Brasil de
2027 proposto pelo filme, o carnaval

pagão desapareceu, substituído pe-
las raves evangélicas da igreja do
Divino Amor. A heroína, Joana (Dira
Paes), trabalha num cartório nota-
rial, mas é também membro do Di-
vino Amor e não hesita em propagan-
dear as suas crenças junto dos cida-
dãos que atende. No entanto:
Bolsonaro foi eleito em Outubro de
2018, e Divino Amor, que estava em
preparação desde 2017, estreou em
Sundance em Janeiro de 2019. Um
pouco como Bacurau de Kleber Men-
donça Filho e Juliano Dornelles (ou-
tro filme que também engaja direc-
tamente com o Brasil contemporâ-
neo) ou Marighella de Wagner Moura
datavam já, criativamente, de um
período pré-Bolsonaro, o que anula
a relação causa-efeito (e, de algum
modo, também “encaixa” os filmes
em gavetas que acabam por dirigir o
olhar do espectador).
Claro que tudo isto já se anunciava

desde o longuíssimo processo de im-
peachment de Dilma – impossível não
ser cidadão e artista brasileiro sem ser
afectado por tudo o que isto signifi-
cava – e claro que não é casual que
Divino Amor também fale deste Brasil
que se transfigurou aos poucos ao
longo dos últimos anos. Mas Mascaro,
em entrevistas, colocou mais a ori-
gem do filme no terreno ganho no
Brasil pelas igrejas evangélicas, o
modo como elas foram tomando
conta da paisagem religiosa, que aliás
testemunhou na sua área do Recife
enquanto crescia. E, à imagem das
ficções anteriores de Mascaro, esta
igreja do Divino Amor altamente tec-
nologizada, corporatizada, regula-
mentada, com drive-throughs de
oração, não é olhada com condescen-
dência, antes com uma genuína e
sincera curiosidade etnográfica.
Mascaro nunca julga – como nunca
julgou — as suas personagens, e o que
Divino Amor sublinha é como esta fé
light e conveniente é aquilo que dá
sentido à vida de Júlia, à sua vida ba-
nal de classe média-baixa com o ma-
rido que é florista (na linha de inver-
sões anteriores do cineasta, como o
vaqueiro com aspirações de estilista
de moda de Boi Néon). É quando o
mundo de Joana perde o equilíbrio
que tudo começa a descambar – e se
Divino Amor parece ser um filme mais
“em aberto” do que os anteriores,
isso é porque, no seu futurismo es-
condido com rabo contemporâneo
de fora, esta será a mais assumida-
mente “inventada” das três ficções de
Mascaro.
Ventos de Agosto, retrato de um Ve-
rão num povoado remoto através dos
olhos do casal improvável formado
por dois adolescentes, e Boi Néon,
olhar sensual sobre uma família im-
provisada no circuito das vaquejadas
(e que é ainda a melhor ficção do rea-
lizador), eram filmes do presente,
oscilando no equilíbrio precário entre
um passado enraizado e um futuro
flutuante, ancorados na paisagem e
na vivência pernambucana, mas re-
cusando-se a fechar portas às possi-
bilidades do futuro. Eram ficções que
mantinham um pé no real, resultado
de pesquisas e encontros no terreno
que eram depois “desviados” para
narrativas abertas à própria alteri-
dade e diferença das personagens no
seu centro.
Divino Amor é um filme de um pre-
sente disfarçado de futuro, urbano e
deslocado, completando uma espé-
cie de circuito: em Ventos de Agosto
as personagens de Mascaro eram os
residentes de uma aldeia remota,
enquanto em Boi Néon eram nóma-
das em constante movimento entre
o rural e o urbano. Divino Amor é pu-
ramente urbano, e isso parece de
algum modo desequilibrar o cineasta


  • como se a própria necessidade da
    cidade o constrangisse, a ele e às pos-
    sibilidades que o seu cinema sempre
    quis abrir. É também por isso que
    Divino Amor nos parece menos ins-


Divino Amor
De Gabriel
Mascaro
ComDira Paes e
Júlio Machado

mmmmm


Ventos de
Agosto
De Gabriel
Mascaro
Com Dandara
de Morais e
Geová Manoel
dos Santos

mmmmm

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