Folha de São Paulo - 21.10.2019

(Brent) #1

aeee


poder


A14 Segunda-Feira, 21 de OutubrOde2 019


SÍNODODAAMAZÔNIA



  • Reinaldo José Lopes


SãoCarloSEntreos partici-
pantesbrasileiros do Sínodo
da Amazônia,reuniãoconvo-
cada pelo papaFranciscoque
atéestedomingo( 27 )discu-
te os rumos dafé edos pro-
blemas sociaiseambientais
naregião,estáuma delega-
çãode 26 membros que de-
fende umaforma deevange-
lizarospovos indígenas bas-
tantedistintadaque marcou
aIgrejaCatólicadesdeasua
chegadaaoBrasil.
“Trabalhamoscomaevange-
lizaçãonosentidododiálogo,
dorespeitoàsculturasdiferen-
tese,sobretudo,dodesafio de
perceber os sinais da presen-
çadeDeus no meio decada
povo”, dizdomRoquePalos-
chi, arcebispode PortoVelho
epresidente do Cimi(Conse-
lho IndigenistaMissionário).
Criado em 1972 ,duranteo
regime militar,oCimiconta
hojecom 171 missionários,
divididosem 11 regionais es-
palhadas pelopaís.Nadele-
gaçãoenviada ao sínodo em
Roma estãotantooarcebis-
po quantomissionárioslei-
gos(nãoreligiosos)eparcei-
rosindígenasdoórgão.
Influenciado pelateologia
da libertação,correntedepen-
samentoparaaqual nãoépos-
sível separarafécristãdalu-
ta contraapobrezaeadesi-
gualdade,oconselho oferece
assistênciajurídica,teológica
edecomunicação àscomuni-
dades indígenas quebuscam
seusdireitosconstitucionais,
sem que isso impliqueacon-
versão aocatolicismo.
Com 14 anosdeepiscopa-
do na Amazônia (antesde se
tornararcebispo de PortoVe-
lho,tambémfoibispodeRo-
raima),domRoquePaloschi
explicaasdiferentes aborda-
gens desse trabalho.
“EmRoraima, tiveduasex-
periências diferentes. Com o
povomacuxi,que já tinha ti-
docontatocom mongesbe-
neditinos no início do século
20 ,esseprocessodediálogo


Missionários abandonam conversão


religiosaaoseaproximardeindígenas


Vaticano ampliafoco edebatetemas polêmicos paraigreja em encontrocombispos da amazônia


Mongefranciscanoelíder indígena participam juntos de procissão noVaticano VincenzoPinto/ AFP

çarcaminhos juntocomas po-
pulações”,diz oarcebispo.“Se
um macuxisetornacristão e
católico, não pode negar sua
tradição,seuscostumes, sua
história.Docontrário,aevan-
gelização setornacolonização.”
Odocumentoinicialprepa-
rado paraasdiscussões do sí-
nodo, ochamado“instrumen-
tumlaboris” (“instrumentode
trabalho”, em latim),tem sido
atacado porcardeaiseoutros
preladosconservadores.
Ascríticassecentram nas
propostas paraacolherin-
fluênciasteológicaserituais
dos povosindígenas na litur-
giacatólica etambém no de-
bate sobrepermitir padresca-
sadoseuma maior participa-
çãodas mulheres na igreja.O
arcebispode PortoVelhodiz
queomelhoréevitarreações
violentas aos críticos.
“Diantedas polêmicas, das
acusações,omelhorcami-

nhoéseguiraexperiência de
Jesus. DiantedePilatosede
Herodes,Jesus quase nãofa-
la. Evitouabateção de bocae
foifiel àsuamissão.”
Para AleandroSilva,aviru-
lência dosataques jáexistia,
emcertamedida, nos grupos
católicos ultraconservadores
brasileiros, porexemplo.“Eles
já tinham essa visão deturpa-
da do Evangelho antes.”
Omissionárioressaltaaim-
portância dos debatespropos-
tospelo documento.
“A genteestáfalando deregi-
õesremotas, paraondeamai-
oriados padres não quer ir.Às
vezesopessoaldoCimi leva
doismeses viajando de barco
parapercorrer novealdeias,
gastando milhares dereais,
quando seria possível ofere-
cerassistênciareligiosaaes-
sas populações de outrama-
neira,formando pessoas nas
própriascomunidades.”

“Teremosconsequências
positivas paraaigreja no mun-
dotodo: elavaisearejar,abrir
as janelasedeixar de se pautar
apenas pelarealidade euro-
peia.Eserámuitoimportan-
te denunciaravisão destruti-
va eintegracionista queexis-
te sobre os povosindígenas.”


Se um macuxi se
tornacatólico,
não pode negar
sua tradição.
Docontrário,a
evangelização se
tornacolonização

domRoquePaloschi
arcebispo de Porto Velho

Há 40 anos, ditaduraproibiu líder de encontrar papa no México



  • Paula Sperb


PortoalegreCaminhandoà
noitecomtochasacesasnas
mãos,cercade 20 pessoasgri-
tavam “Cristo, sim;comunis-
mo não” em protestoaoiní-
ciodo encontro de bispos la-
tino-americanoscomapre-
sençadopapa.
Ocenáriopolarizado lem-
braoque antecedenoSínodo
da Amazônia, que se encerra
no domingo( 27 ),etemren-
didoatéacusações de here-
sia ao papaFrancisco. Acena,
porém, ocorreuhá 40 anos.
Osataquesconservadores
marcaramaConferênciaGe-
raldePuebla, no México, em
janeiro efevereirode 1979 ,li-
derada pelo então papaJoão
Paulo 2 º.Oprotestodecató-
li coscríticos ao pontíficefoi
registrado pelos enviados es-
peciaisdaFolha.
Duranteapassagem pelo
México, JoãoPaulo 2 ºcriticou
fazendeiros que “escondem o
pão necessitado portantasfa-
mílias”.Diante de 700 mil indí-
genasecamponeses, em Cui-
lapan,disse: “Nãoéjusto, não
éhumano,nãoécristãocon-
tinuarpráticas quecertamen-
te são injustas”.Oentão papa
aindacobrou “medidasverda-
deiramenteefetivas” dos que
“mais possuem”.
Um indígena brasileirode-
veria encontrarJoãoPaulo 2 º,
ao ladode enviadosde Peru,
BolíviaeMéxico. Apenasore-


presentante do Brasil não es-
tava presente.Daniel Mateño
Cabixi, da etniahaliti-paresi,
de Mato Grosso,foi proibido
peladitaduramilitar de via-
jar paraoencontro.
Sobogoverno dogeneral
ErnestoGeisel,aFunai(Fun-
daçãoNacionaldoÍndio) não
autorizou Cabixiasair do pa-
ís. Aproibição tinha base no
EstatutodoÍndio,sanciona-
do pelogeneral Emílio Médici,
em 1973 .Essetipode“tutela”
só mudouapartir da Consti-
tuição de 1988.
“Querocomunicaravocês,
índios participantesemPue-
bla,atravésdestadeclaração
paraesteencontroque, infe-
lizmente, nãovoupoder parti-
cipar.IstoporqueaFunai não
permitiu.Por isso esperoque
vocês, aoretornarem aos seus
países, denunciem em suas
comunidades que os direitos
humanos dos índios brasilei-
rosestão sendo violados”,es-
creveu Cabixi em umacarta
divulgada noevento.
“Oregime detutela aque es-
tamos submetidos visaanos
oprimir”, acrescentou, criti-
candooEstatutodoÍndio e
clamandopela autodetermi-
naçãodos indígenas da Amé-
ricaLatina.
Cabixi morreu em 2017 .Seu
filhomaisvelho, ocacique
RonyParesi, da aldeiaWaza-
re,emMatoGrosso,recorda
que seu paifoi umadas prin-
cipais figuras em um perío-

proibido peladitaduradever
opapa, Cabixiconseguiu auto-
rização para ir ao Peru partici-
par do Congresso Latino-Ame-
ricano dos PovosIndígenas.
Seu passaporte, porém, era
o“amarelo”,paraestrangeiros
eapátridas,relatouoamigo
José RibamarFreireemum
textodememória da viagem.
AFolhaestavapresente
quando Cabixi ocupouomi-
crofone, em 1980 ,noPeru.
“NoBrasil,índio nãotem
direitodeirevir livremente,
sendotutelado pelo Estado.
Istosignificaque índio brasi-
leiroprecisadaautorização
do Estado paraselocomover
dentrodoseuprópriopaís, e
obviamenteparaforadopa-
ís também”, disse.

avontadedaprópriacomu-
nidadedebuscar,naépoca,
oreconhecimentodos direi-
tos, oreconhecimentoede-
marcaçãodosterritórios in-
dígenas”, contaofilho.
Ronyéprofessorformado
em Licenciatura Intercultural
Indígenapela Unemat(Uni-
versidade do Estado de MT),
curso quefoiimplantadocom
acontribuição do seu pai.
Ocaciquefezuma especiali-
zação na qual estudou ascon-
tribuições deDaniel Cabixi.
Umadas preocupações de
Cabixi eraque indígenascomo
os haliti-paresi, que já não es-
tavamtão distantes das cida-
des, tivessematividadesque
gerassemrenda paraevitar
aexploração de sua mão de
obrapelosfazendeiros dare-
gião.Assim,eles mesmos pas-
saramaproduzir.Aplantação
de soja mecanizada pelos pa-
resi geracontrovérsia em al-
guns meios indigenistas.
“Ele viu que uma das alter-
nativas eratrabalharaprodu-
çãoagrícola. Há 15 anos traba-
lhamoscomrespeitoaomeio
ambienteeemequilíbriocom
aquestão cultural parauma
vida digna. Ele sempredizia
que um povosem alternati-
va econômicanoseuterritó-
rio setorna vulnerávelnosis-
temaglobal ecapitalistaeu
existehoje”,diz ocacique. Sua
aldeia,Wazare,tambémtem
vocaçãoparaoecoturismo.
Noano seguinteapós ser

do em que se chegavaadi-
zerque sua etnia seriaextin-
ta:apopulaçãoeraestimada
em menos de 300 indivíduos
emcercade 12 aldeias.Hoje
são 1. 700 haliti-paresisviven-
do emterritório próprio,em
mais de 60 aldeias.
“Elefoiprotagonistadare-
sistência, da lutaemdefesa
dos direitos indígenas, para
preservaraessência da vida
do povo.Apartirde 1970 até

os diasatuais,foiumdos pio-
neirosao lado de outras lide-
ranças renomadasadesenca-
dear debatespolíticos,refle-
xões sobremétodosepráti-
caspedagógicaseeducacio-
nais querespeitamadiversi-
dadesociocultural, linguística
ecosmológicados povosindí-
genas”,diz ocacique àFolha.
“Elefoirealmenteimpedi-
do de levarnaquela épocada
ditadura overdadeiroanseio,

DanielCabixi, morto em 2017 RonyParesi

meio da nossa presençasoli-
dáriaaolado delas,paraque
conquistem seus direitos.”
DeacordocomSilva, um
dos modelos paraessa abor-
dagemfoiaatuação de mis-
sionárias francesas, ligadas à
Fraternidadedas Irmãzinhas
deJesus, juntoaos tapirapés,
povo de Mato Grossoque qua-
se desapareceu nasprimeiras
décadas do século 20.
Comaajuda das missionári-
as, cujo trabalho de assistên-
cia médicareduziu drastica-
menteamortalidade infantil
entreostapirapés,aetnia ho-
je temuma população decer-
ca de milpessoas.
Elas tinhamuma pequena
capela na aldeiados tapirapés,
às vezesvisitada pelos indíge-
nas, mas passaramavalorizar
os ritos tradicionaisdogrupo
etêmcertaparticipação neles.
“A evangelização nãoéentre-
garumpacotepronto, mas tra-

incluiuaacolhida dos sacra-
mentos[comoobatismo].”
“Jácomopovoianomâmi ti-
vemos outroprocesso,deres-
peitoedepromoção da vida
daquelascomunidades.Nãoé
umaevangelizaçãoexplícita,
mas uma presença respeitosa
dos missionários juntoaeles.”
Achamada “evangelização
implícita”,defato, éumdos ei-
xosdotrabalhodoCimi, diz
omissionário leigoAleandro
Laurindo da Silva, 36.
Eletrabalhacomcomuni-
dades indígenas urbanas, de
etniascomo osguaraniseos
pancararus, na GrandeSão
Paulo,ecom grupos doVa-
le do Ribeira(tambémgua-
ranis), no interior do estado.
“Nos nossos encontros, não
falamos deJesus, deDeus, da
eucaristia.Aperspectivaé:co-
movamos mostraraessasco-
munidades que os cristãos são
bons, queDeusébom? Por

$
Entendaoqueéo
Sínodo daAmazônia

Oque é
Sínodoéumareunião
episcopal de especialistas,
convocadaepresidida pelo
papa.OdaAmazônia tratade
assuntoscomuns aos nove
países do bioma, organizados
em dois eixos: pastoral
católicaeambiental.Teve
início em6deoutubro, no
Vaticano,evai atéodia 27

Paraque serve
Éummecanismo deconsulta
do papa.Os convocadostêm
afunção de debaterede
fornecer material paraque
ele dê diretrizes ao clero,
expressas em um documento
chamadoexortação apostólica

Quem participa
OSínodo da Amazônia
reúne 185 padres sinodais
(como são chamados os
bispos participantes), sendo
57 brasileiros. Também
há líderes de outras
comunidades cristãs, da
populaçãoeespecialistas —
no total, há 35 mulheres

Principais polêmicas
Estesínodotemrecebido
críticas da alaconservadora
da igreja, que vêcomo
inapropriadoodebatesobre
aordenação de homens
casadoscomo sacerdotes,
acriação de ministérios
oficiais paramulheresea
incorporação decostumes
indígenas em rituais católicos


Aoretornarem
aos seus países,
denunciem em suas
comunidades que
os direitos humanos
dos índios brasileiros
estão sendo violados

Daniel Mateño Cabixi
índio haliti-paresi, em carta após
tersido proibido peladitadura
brasileiradeviajaraencontro
indígena no México, em 1979
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