seus amantes – a deitar-se naquela cama. Era óbvio que Jesper fora um
homem apaixonado e, segundo a avó, era por isso que o cavalo que enfeitava
a cama perdera a cabeça. O capitão Jesper, no seu êxtase, arrancara-a à
dentada.
Anna riu-se e Harry sorriu. Depois o cigarro acabou e fizeram amor sob o
ranger e estalar da madeira de Manila, o que fez com que Harry pensasse que
estava num barco sem ninguém ao leme, mas que isso não interessava.
Aquilo acontecera há muito tempo, e fora a primeira e a última noite em
que dormira sóbrio na cama da avó de Anna.
Harry contorceu-se na estreita cama de ferro. O despertador digital na
mesa-de-cabeceira exibia o número 03h21. Fechou os olhos e os seus
pensamentos regressaram lentamente a Anna e ao Verão nos lençóis brancos
da cama da avó. Tinham sido mais as vezes em que estava bêbado do que
aquelas em que não o estava, mas recordava-se das noites, rosadas e
maravilhosas como postais eróticos. Até a última coisa que ele lhe dissera
quando o Verão terminou fora banal, mas não deixara de ser um cliché
apaixonadamente sentido: «Mereces alguém melhor que eu.»
Naquela fase ele bebia tanto que tudo apontava numa direcção. Num dos
seus momentos de maior lucidez, decidira que não a iria arrastar consigo. Ela
amaldiçoara-o na sua língua estrangeira e jurara que um dia lhe faria o
mesmo: lhe tiraria aquilo que ele mais amava.
Isso acontecera há sete anos, e a relação apenas duraras seis semanas.
Depois disso, só a tinha encontrado duas vezes. Uma vez num bar em que ela
se aproximara com os olhos cheios de lágrimas e lhe pedira para ele ir para
outro lado qualquer, o que ele fizera. E uma vez numa exposição onde Harry
levara a irmã mais nova. Prometera ligar-lhe, mas nunca o fizera.
Harry rolou para o lado para olhar de novo para o relógio. 03h22. Beijara-a.
No fim da noite, assim que se encontrou em segurança no exterior da porta de
vidro ondulado do apartamento, inclinara-se para a frente para lhe dar um
abraço de despedida e esse transformara-se num beijo. Fácil e estupendo. Ou
pelo menos, fácil. 03h23. Céus, quando é que ele se tornara tão sensível que
sentia uma aguilhoada de culpa por ter dado a uma antiga paixoneta um beijo
de boa noite? Harry tentou respirar fundo e com regularidade, para concentrar
a mente em possíveis rotas de fuga a partir da Bogstadveien pela Industrigata.
Dentro. Fora. De novo, dentro. Sentiu o perfume dela. Sentiu a pressão doce
do seu corpo. A insistência áspera da sua língua.
3 Literalmente «língua de livro». A língua escrita mais usada na Noruega das duas línguas padrão