Público - 14.10.2019

(Barry) #1
2 • Público • Segunda-feira, 14 de Outubro de 2019

DESTAQUE


ELEIÇÕES EM MOÇAMBIQUE


Manipulação


do recenseamento


ensombra eleições


moçambicanas


Número anormal de recenseados na província de Gaza, onde


a Frelimo obtém os melhores resultados, marcou campanha


eleitoral violenta, com 44 mortos, um deles observador eleitoral


António Rodrigues,
em Maputo

O

s moçambicanos vão a votos
amanhã para eleger o Presi-
dente, Parlamento e assem-
bleias provinciais com o
espectro da fraude a pairar
sobre o resultado das elei-
ções, numa campanha fraca em can-
didatos e programas políticos, mar-
cada por uma grande dose de violên-
cia e mesmo morte.
“São as eleições mais violentas de
que há memória”, diz ao PÚBLICO o
sociólogo moçambicano Elísio Maca-
mo, professor na Universidade de
Berna, para quem o “vazio de ideias”
terá contribuído para “este tipo de
ambiente” que “convida à confron-
tação física ao invés de convidar ao
debate de ideias”.
“Ficou claro que os partidos não
prepararam adequadamente os seus
membros e simpatizantes para a cam-
panha”, refere, por seu lado, Dércio
Alfazema, da Sala da Paz, plataforma
de organizações da sociedade civil

em Moçambique. “Muita multidão,
poucas medidas de prevenção e segu-
rança, infra-estrutura precária.”

Más contas em Gaza
Uma campanha violenta para uma
eleição que deve terminar com o
mesmo resultado de sempre, a vitó-
ria da Frelimo e a reeleição do chefe
de Estado. Mais ainda quando o pro-
cesso já começou enviesado no
recenseamento, que se iniciou tarde
(por causa do ciclone Idai que atin-
giu o centro do país) e acabou por
deixar de fora 1,2 milhões do total
de eleitores que deveriam ser recen-
seados.
O mais gritante foi a manipulação
em Gaza, onde a Frelimo, o partido
no poder desde a independência,
obtém sempre os seus melhores
resultados. Enquanto o Instituto
Nacional de Estatísticas moçambica-
no registou um aumento de 15,1% de
população na província em dez anos,
o Secretariado Técnico da Adminis-
tração Eleitoral (STAE) conseguiu
registar um crescimento de quase
100% no número de eleitores em cin-

co anos: de 591 mil eleitores em 2014
para 1,166 milhões em 2019.
Se o Censo contabiliza mais de
metade da população de Gaza com
menos de 14 anos (612.436), o recen-
seamento coloca a cifra de menores
de 18 anos em apenas 256.449 pes-
soas.
O sucesso do registo foi tão grande
na província onde o Presidente Filipe
Nyusi ganhou em 2014, com 88% dos
votos, que conseguiu incluir 161% dos
adultos nos cadernos eleitorais. Para
que se entenda melhor, as equipas de
trabalho conseguiram o feito de
recensear mais 61% do número de
pessoas com 18 anos ou mais do que
as estatísticas aÆrmam existir.
Com este novo recenseamento, a
província de Gaza passa a eleger mais
deputados para a Assembleia da
República do que a cidade de Mapu-
to, passando de 13 para 22 mandatos,
enquanto na capital se elegem 20
deputados. Ao mesmo tempo, as pro-
víncias de Nampula, Zambézia e Sofa-
la, onde normalmente a oposição é
mais forte, perderam em conjunto
nove lugares no Parlamento.

que monitoriza processos eleitorais
em Moçambique.
Não só foram cometidas várias ile-
galidades eleitorais pelos partidos
como se registaram “pelo menos
duas mortes por violência eleitoral e
vários acidentes que resultaram em
morte de membros e simpatizantes”
de partidos, explicou o activista.
De acordo com a contabilização
feita pelo Centro de Integridade
Pública (CIP), desde o arranque da
campanha, a 31 de Agosto, já morre-
ram 44 pessoas em incidentes rela-
cionados com o processo eleitoral. “É
preocupante o número de pessoas
que perderam a vida nestas eleições”,
lamentou Alfazema.
Na segunda-feira passada o obser-
vador eleitoral Anastácio Matavel
foi morto a tiro por agentes da polí-
cia em Xai-Xai, capital da província
de Gaza. Dércio Alfazema diz que as
razões para a sua morte ainda “não
são claras”, mas a Sala da Paz, e
outras organizações da sociedade
civil, acredita que tenha sido morto
“pelo seu activismo e trabalho pela
transparência eleitoral”.

“No mapeamento dos ilícitos e da
violência eleitoral realizado pelo Ins-
tituto para a Democracia Multiparti-
dária, organização que coordena a
Sala da Paz, a província de Gaza apa-
recia como uma das mais violentas.
Mas, ainda assim, não era de esperar
que um observador eleitoral pudesse
ser brutalmente assassinado”, acres-
centou Dércio Alfazema.
Todos esperam agora que a polícia
cumpra com a promessa de ter em
duas semanas uma conclusão preli-
minar que elucide a razão pela qual
Matavel foi assassinado por agentes
da polícia. Mas há muitos que duvi-
dam, a julgar pela falta de investiga-
ção ao que aconteceu no comício da
Frelimo em Nampula, onde dez pes-
soas morreram espezinhadas quando
a multidão tentou sair pela única por-
ta que a segurança do Presidente
deixara aberta no estádio.
“O incidente de Nampula e todos
os outros carecem de investigação”,
refere o activista. “Embora me pare-
ça evidente”, diz por seu lado Elísio
Macamo, “que se trata de um inci-
dente típico desse tipo de ambientes”
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