Público - 14.10.2019

(Barry) #1
Público • Segunda-feira, 14 de Outubro de 2019 • 27

SEDAT SUNA/EPA

Os curdos
temiam que as
milícias do
Exército Livre
da Síria os
massacrassem

ra têm a oportunidade para a tão
aguardada vingança.
Erdogan quer usar essa “zona de
segurança” para deslocar mais de
dois milhões de refugiados árabes
sírios para o Nordeste da Síria, com
o objectivo de arabizar a região e,
assim, terminar com uma signiÆca-
tiva extensão de território demogra-
Æcamente curda. Ao mesmo tempo,
salva a indústria da construção civil
turca, em profunda crise, com a
construção de vilas e cidades para
essa nova população, e dá um duro
golpe aos intentos curdos de um dia
terem um Estado próprio.

Fuga do Daesh
Mas os intentos de Erdogan estão a
criar uma oportunidade para o Daesh
renascer, como temiam os observa-
dores. Quase 800 jihadistas fugiram
ontem da prisão curda de Ain Issa,
ajudados por bombardeamentos tur-
cos nas proximidades e pelo ataque
das milícias aos guardas do campo,
entre 60 e 70, que deviam controlar
os 12 mil detidos.
“Queremos que a Turquia pare o
mais rapidamente possível com a
ofensiva”, disse a porta-voz do
Governo francês, Sibeth Ndiaye, à
televisão France 3. A situação no
Nordeste da Síria está a “piorar de
hora a hora”, complementou o secre-
tário de Defesa norte-americano.
O elevado número de civis deslo-
cados e mortos, o acentuar da ins-
tabilidade na Síria e o renascer do
Daesh têm feito com que os aliados
da Turquia na NATO teçam duras
críticas a Ancara, chegando a sus-
pender a venda de armamento,
como Æzeram a Alemanha e a Fran-
ça, mas sem quererem intervir
directamente. Por sua vez, a Liga
Árabe classiÆcou a ofensiva turca
como “invasão de terras árabes”,
aliando-se ao regime de Assad.
A chanceler alemã, Angela Merkel,
tentou ontem forçar a mão a Erdo-
gan, pedindo-lhe numa chamada
telefónica para “terminar de imedia-
to” as operações militares, mas o
Presidente da Turquia rejeitou-o, tal
como tem feito até agora. Recusa as
críticas dos seus aliados e chega
inclusive a ameaçá-los com a abertu-
ra das fronteiras para permitir que
os 3,6 milhões que se encontram em
solo turco possam dirigir-se para a
Europa.

Esta ofensiva pode


criar uma situação
humanitária

insustentável e ajudar


o Daesh a reemergir
Emmanuel Macron
Presidente francês

[email protected]

A agressão turca, com o
beneplácito de Trump, contra o
Curdistão, controlado pelas Forças
Democráticas Sírias, aliadas
decisivas do Ocidente na luta
contra o Daesh, é uma clara
conÆrmação de que a ordem do
Médio Oriente sob liderança
americana, com o apoio crítico dos
europeus, entrou em colapso.
Erdogan justiÆca a guerra com o
mantra do combate ao terrorismo e
com o objetivo de controlar uma
faixa do território sírio para aí
deslocar os milhões de refugiados
que a Turquia acolheu. Para Trump,
a ofensiva de Erdogan representa os
crocodilos e as cobras que queria
colocar numa fossa entre o México e
os Estados Unidos. Trump, para
justiÆcar a sua traição, chama à
invasão turca uma “guerra tribal
centenária”, que nos faz lembrar a
formulação racista “deixem que
esses selvagens se matem uns aos
outros”. É verdade que os cidadãos
americanos estão fartos de ver os
seus soldados partirem para guerras
inglórias no Médio Oriente e
regressarem com o opróbrio
resultante dos crimes que aí
cometeram, como na invasão do
Iraque. Todavia, também é verdade
que a presença militar americana
no nordeste da Síria era reduzida e
tinha o efeito positivo de dissuadir
uma ofensiva turca.
É indignado que constato a
impunidade com que a Turquia
invade e bombardeia o nordeste da
Síria. Indignação que é a nossa
desde 2011, quando Assad, com o
apoio militar da Rússia e do Irão,
recorreu à violência mais brutal
para reprimir a vontade
democrática dos sírios. O
sofrimento de curdos e árabes
(muçulmanos e cristãos) do
Nordeste da Síria é o mesmo dos

habitantes de Alepo, de Homs ou de
Ghouta.
Americanos (durante os anos
Obama) e europeus tinham a
obrigação de ter protegido os sírios.
Como aÆrmou KoÆ Annan no seu
discurso do milénio, é um
imperativo ético pôr termo à
impunidade dos crimes contra a
humanidade, recorrendo à força, se
necessário. Foi por isso que apoiei a
intervenção humanitária na Bósnia,
para pôr Æm ao massacre dos
muçulmanos pelos nacionalistas
sérvios e a criação do TPI. E
considerei, como considero, um
avanço da humanidade que tenham
sido julgados os que tinham
cometidos crimes na Bósnia e na
Croácia, na Libéria ou no Ruanda.
A intervenção na Líbia, justiÆcada
com recurso ao princípio do direito
de proteger, legitimada pelo
Conselho de Segurança, foi
desvirtuada na sua aplicação e
tornada numa operação de
mudança de regime. O fracasso líbio
tornou mais difícil a criação dos
consensos necessários para
proteger os sírios e explica, em
parte, o recuo de Obama, que expôs
a incapacidade dos europeus para
intervirem sem os americanos.
A invasão da Síria pela Turquia
põe em causa os princípios
fundadores das Nações Unidas. A
incapacidade do Conselho de
Segurança das Nações Unidas,
apesar dos esforços europeus, em
aprovar uma resolução que
condene a invasão, mostra como
estamos distantes dos anos 90. Em
1991, o Conselho de Segurança não
só condenou a invasão do Kuwait
por Saddam Hussein, como
legitimou a coligação internacional
dirigida pelos Estados Unidos para
lhe pôr termo.
Das políticas de intervenção
humanitária dos anos 90 passámos
para as guerras de conquista do
século XXI. O momento de viragem
foi a invasão do Iraque em 2003
pelos Estados Unidos. A invasão do
Iraque foi uma guerra de conquista
que abriu um perigoso precedente,
a que se seguiram a anexação da
Crimeia pela Rússia de Putin e hoje

A invasão turca: a hora da Europa


Opinião
Álvaro Vasconcelos

a invasão do Curdistão sírio pela
Turquia.
É um erro grave pensar que a
invasão turca é apenas mais uma
guerra do Médio Oriente.
Aceitarem-se guerras de conquista e
crimes contra a humanidade é
permitir a destruição progressiva da
Ordem Internacional. É aceitar um
mundo em que as guerras de
agressão voltam a ser a regra.
Ainda há dias, numa conferência
em Bruxelas, foi dito por um alto
responsável europeu que a União
nada podia fazer na Síria. Não
podemos aceitar tal resposta.
Quinhentos milhões de europeus
não podem, cinicamente, deixar
que centenas de milhares de
pessoas sejam assassinadas na Síria
e só se preocuparem quando
Erdogan os ameaça com os 3,5
milhões de refugiados sírios que
alberga. A União Europeia deve
responder à chantagem com a
defesa dos princípios em que se
funda e preparar-se para receber
refugiados caso seja necessário. O
Congresso norte-americano ameaça
a Turquia com sanções económicas,
caso não trave a ofensiva. A União
Europeia pode e deve associar-se a
essa ameaça.
É preciso mostrar a Erdogan que,
com esta ação militar, perdeu o que
lhe restava do capital de simpatia
que tinha conquistado na Europa,
com as reformas democráticas do
início deste século, que entretanto
pôs em causa, e com uma generosa
política de acolhimento de
refugiados sírios.
O regresso ao projeto da Europa
como potência multilateral é hoje a
única esperança para nos
prevenirmos das consequências do
caos e da guerra no Médio Oriente.
A esperança é ténue, mas a União
Europeia já não pode contar com os
Estados Unidos para garantir a sua
segurança. Mesmo num mundo
pós-Trump, a União não poderá
escapar às suas responsabilidades
na construção da paz no Sul do
Mediterrâneo, se quiser ter paz na
Europa.

Fundador do Fórum Demos

jornalistas a bordo foi bombardeado
pelos turcos nas proximidades de
Ras al-Ayn, causando a morte a pelo
menos 11 pessoas e ferimentos nou-
tras 74, segundo números do Cres-
cente Vermelho Curdo prestados ao
Rojava Information Center.
Os curdos receiam Æcar sob o jugo
destas milícias e, por isso, mais de
130 mil fugiram das suas casas nas
cidades fronteiriças para o interior
da Síria, com as Nações Unidas a
dizerem que o número de desloca-
dos pode chegar aos 400 mil nos
próximos dias. É que os membros
destas milícias, muitos dos quais
viviam nas cidades fronteiriças com
a Turquia, como Ras al-Ayn e Tal
Abyad, foram vítimas de deslocação
forçada pelos curdos em 2015 e ago-

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