Público - 14.10.2019

(Barry) #1

32 • Público • Segunda-feira, 14 de Outubro de 2019


CULTURA


O caminho entre o bullying , o fana-
tismo clubístico e religioso ou o
genocídio pode parecer longo, mas
tem em comum um sentimento
transversal a todos os humanos, que
os fragmenta e corrói — o ódio. A
ideia de se fazer um documentário
que explora as razões pelas quais
odiamos e somos capazes de aniqui-
lar um ser igual a nós é algo que
começou a germinar na mente do
cineasta Steven Spielberg depois de
realizar o aclamado Ælme A Lista de
Schindler
, que retrata as atrocidades
cometidas em tempos da guerra
nazi. Anos depois, o documentário
Why We Hate ganhou forma pelas
mãos dos realizadores Geeta Gandb-
hir e Sam Pollard, e o seu primeiro
episódio, sempre ao domingo, foi
exibido ontem, às 22h, no canal Dis-
covery.
As cicatrizes do ódio tanto têm
anos como estão ainda em carne
fresca. São visíveis por todo o mun-
do, começando-se por aconteci-
mentos mais quotidianos como o
bullying , a homofobia ou o anoni-
mato das redes sociais até extremos
em que o ódio se derrama em san-
gue, como o Holocausto ou o geno-
cídio no Ruanda. “Isto é uma condi-
ção humana e não há nenhuma
parte do mundo que não tenha sofri-
do com isto”, conta ao PÚBLICO a
realizadora Geeta Gandbhir, numa
roda de jornalistas em Los Angeles,
onde foi apresentado o documentá-
rio. “De uma forma terrível, mas
também interessante, o ódio é uma
coisa que nos une — todos temos o
mesmo problema, podíamos traba-
lhar juntos para o resolver.”
Em 2019, é um tema mais perti-
nente e actual do que poderiam ter
antecipado há cinco anos, quando
começaram a investigar as histórias
que queriam contar. “Se olharmos
para o estado actual do mundo, per-


cebemos que é uma altura muito
importante para se fazer esta série
e aprofundar o porquê de as pessoas
se odiarem, por que é que se que-
rem destruir umas às outras”, aÆan-
ça o realizador Sam Pollard.
Os dois realizadores não hesitam
em responder que a liderança polí-
tica nos Estados Unidos está a pro-
mover um clima de ódio e que a
polarização política no país “é hoje
um dos maiores fossos sociais, mais
do que a etnia”. Antes, “era a etnia
que separava as pessoas, agora é o
partido político. Há quem não
namore com alguém se for de outro
espectro político, costumava ser
uma questão racial”, exempliÆca
Gandbhir.

Com medo do outro
Para se chegar à génese do ódio, a
série envereda pela ciência do ódio,
estudando a biologia evolutiva e
psicologia, tentando-se perceber a
parte social e comportamental que
leva os humanos a conseguirem ser
tão odiosos entre si. Começa por
explicar que os chimpanzés e os
bonobos, apesar de serem quase
geneticamente iguais, vivem em
zonas com recursos diferentes: os
bonobos têm muita água e comida
e são pacíÆcos e generosos; os chim-
panzés, ameaçados pela falta de
sustento, podem ser agressivos ao
ponto de matar e comer as crias de
outros chimpanzés.
No caso dos seres humanos, as
razões estendem-se além da falta de
recursos. “A ciência diz-nos que
temos estes cérebros da idade da
pedra que não mudaram muito des-
de então, quando vivíamos em gru-
pos de 150 a 200 pessoas. Qualquer
pessoa fora desse grupo era vista
como uma ameaça. E agora vivemos
numa sociedade gigante e global
com muito mais camadas, como o
racismo, sexismo, homofobia, xeno-
fobia”, explica Geeta Gandbhir.
Este “medo do outro” pode ser
perpetuado de diferentes formas:
“Um líder pode dizer-nos que deve-

mos numa democracia — em que
aparentemente vivemos —, temos
mesmo de saber quem pomos no
poder e se são perigosos”, alerta a
realizadora que partilha dois Emmy
com Sam Pollard.
Uma das histórias relatadas no
documentário é a de uma norte-
americana de 25 anos que pertencia
aos fanáticos religiosos da Igreja
Baptista de Westboro, que são mani-
festamente contra os homossexuais

Um documentário para perguntar


de onde vem o nosso ódio


Saído da mente de Steven Spielberg


para os pequenos ecrãs de todo


o mundo, Why We Hate é um


documentário de seis episódios sobre


a origem e as vivências em torno do ódio


Televisão


Claudia Carvalho Silva,


em Los Angeles


Uma sociedade
igualitária, com

sistemas de justiça


e de saúde que


funcionem, com
liberdade e sem

racismo para


combater o ódio


mos temer um grupo e desumanizá-
lo, a religião também o pode fazer.
É por isso que temos de nos manter
extremamente conscientes”. Sam
Pollard completa: “No Ruanda, por
exemplo, viam os outros como bara-
tas — não eram humanos. Ao conse-
guir-se fazer com que os outros não
se sintam humanos, torna-se mais
fácil querer eliminá-los.”
Por isso, há que “ter muito cuida-
do com os nossos líderes. Se vive-
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