Público • Segunda-feira, 14 de Outubro de 2019 • 33
FOTOGRAFIAS: AMBLIN TELEVISION/JIGSAW PRODUCTIONS
co está à procura de algum tipo de
amor e quer ser parte de algo e pro-
teger-se de estranhos”, explica o
realizador Sam Pollard.
O documentário desenvolvido
pelas produtoras de Spielberg e Alex
Gibney tem seis episódios, que
serão exibidos a cada domingo. Con-
ta ainda as histórias de crianças que
foram simultaneamente vítimas de
bullying e agressoras, de um antigo
jihadista e de um neonazi que se
apercebeu da perigosidade das suas
ideias extremistas enquanto esteve
preso. E reaviva a História, falando
das eleições no Brasil e do ressurgir
da extrema-direita e supremacistas
brancos nos Estados Unidos, mos-
trando ainda a amálgama de facto-
res que permitiram que eventos
como o Holocausto e o Apartheid
pudessem acontecer.
O último episódio, a 17 de Novem-
bro, termina com uma mensagem
de esperança — de casos de sucesso
e daquilo que pode ser feito para
mitigar o ódio. Mas Sam Pollard ten-
ta não se iludir: “Sei que nunca eli-
minaremos o ódio neste mundo, é
impossível. Mas se percebermos os
gatilhos, talvez consigamos perce-
ber como lidar com eles.”
Para o combater, há que “cons-
truir sociedades em que possamos
arrancar o mal pela raiz” — tem de
ser uma sociedade igualitária, com
sistemas de justiça e de saúde que
funcionem, com liberdade e sem
sexismo ou racismo, dizem. “E é
importante identiÆcarmo-nos com
o maior número de grupos possível
e parece que as gerações mais novas
já estão a fazer isto”, acredita Geeta
Gandbhir.
“As ideologias que seguimos são
o ar que respiramos e o tecido da
nossa sociedade; o ónus está em nós
para combater isto, constantemen-
te”, vinca. “Um jornalista que ouvi-
mos contou-nos que era descenden-
te de um huguenot francês, [uma
minoria religiosa] que há anos qua-
se foi eliminada da face da Terra por
serem tão perseguidos, e a verdade
é que agora ninguém quer saber
disso, nem sabem sequer o que é”,
diz. “As coisas levam tempo, mas
mudam. Temos de nos agarrar a
esta ideia.”
[email protected]
Entrevista
A britânica Sasha Havlicek é
especialista em discurso
extremista e é também presidente
do think tank Instituto para
Diálogo Estratégico (ISD), que
fundou há 13 anos, e é uma das
pessoas ouvidas no documentário
Why We Hate. O seu pai trabalhava
na antiga Jugoslávia, onde Sasha
Havlicek passava grande parte das
suas férias de Verão nos tempos
de infância e adolescência — e foi
precisamente em terreno
jugoslavo que viu nos crimes de
guerra as consequências reais de
um ódio abstracto. Hoje, defende
que a chegada de partidos de
extrema-direita ao Parlamento
acontece porque são “peritos em
explorar as inquietudes” dos
cidadãos, daí que “seja preciso
um verdadeiro investimento para
lhes fazer frente” — assim como
ao discurso de ódio.
No domingo, 6 de Outubro,
elegeu-se pela primeira vez um
deputado de extrema-direita
em Portugal, um dos poucos
países europeus sem
representação de
extrema-direita no Parlamento.
Acredita que isto será uma
forma de disseminar ódio ou
antes um reÇexo daquilo que
algumas pessoas querem ver no
poder?
É interessante porque estamos
a ver agora por toda a Europa,
pela primeira vez em muito
tempo, a normalização do
populismo e de partidos de
extrema-direita. Penso que
passaremos a vê-los como
algo permanente no
espectro político,
algo que não
podíamos imaginar
nem há cinco anos.
Uma das razões para
vermos isto é o
poder
extraordinário da
era digital, que de
certa forma permitiu que estes
movimentos que antes eram
locais e de pequena escala se
tornassem internacionais. Não
lhes dar expressão num contexto
democrático pode ser
problemático, mas aquilo que
precisamos de entender é que
tem de haver um verdadeiro
investimento para lhes fazer
frente.
E esse investimento deve partir
do Governo?
Não, acredito que isto acaba por
ser uma questão cívica. Só que
depois a questão inverte-se: de
onde é que o dinheiro vem? O que
os governos têm de fazer é, em
primeiro lugar, ter a certeza
absoluta de que conseguem
assegurar o Estado de direito, o
núcleo da democracia, e
independência — todas estas
coisas que a cartilha dos
nacionalistas autoritários começa
por erodir. Os governos têm de
garantir também os direitos
humanos e garantir que nada
disso é posto em causa. E
precisam de garantir a segurança
das minorias. As democracias
podem ser avaliadas com base no
quão bem protegem as suas
minorias — não a sua maioria.
Estamos a enveredar por um
caminho muito perigoso em que
as democracias estão a ser
confundidas com a ideia de que
fazem leis para a maioria.
Mas há pessoas que se
revêem nestes partidos
de extrema-direita e se
identiÆcam com eles.
Como é que isto
acontece?
Eles abordam todo um
leque de
preocupações e
reclamações da
sociedade. São
peritos em
explorar estas
inquietudes e
ansiedades
relacionadas com
questões políticas
e económicas, mas também de
identidade. Localizam-nas e
exploram-nas de uma forma
muito eÆcaz.
Se nada for feito, isso terá
consequências drásticas?
Estamos a tomar as democracias
como garantidas, sobretudo na
Europa ocidental e na América.
Tornámo-nos extremamente
complacentes. Toda a minha vida
trabalhei com democratização e
com transição em ambientes
pós-conÇito e entendíamos a
necessidade de investir não só na
democracia das urnas, mas
também nos pilares da
democracia: o Estado de direito, a
cultura cívica de democracia, a
liberdade de imprensa,
sociedades livres capazes de lidar
com certos assuntos sensíveis —
todas estas coisas são necessárias
para que uma democracia
funcione. Acredito que há um
perigo existencial caso não
façamos este tipo de
investimento, até porque estamos
a ver isto a descambar para uma
autocracia nacionalista em tantas
partes do mundo, incluindo na
Europa Central. O facto de o
partido de oposição na Alemanha
ser o AfD [partido de direita
radical Alternativa para a
Alemanha] é inimaginável, era
inimaginável há três anos.
Há alguma característica em
comum em pessoas com
discurso extremista?
Todas as pessoas são vulneráveis
ao extremismo, daí que seja difícil
criar um perÆl. Uma das coisas
que mais me chocaram em
cenários de conÇito ou em casos
em que houve genocídio é que
este extremismo afecta todos os
estratos sociais: podem ser as
pessoas mais educadas e
escolarizadas que são susceptíveis
a tornar-se extremistas. Podem
ser os pobres, podem ser os ricos,
podem ser mulheres, podem ser
homens — e também há aqueles
que não são. Cláudia Carvalho
Silva, em Los Angeles
e defendem que a sida é uma doen-
ça enviada por Deus para os matar:
“A minha infância foi passada a dizer
às pessoas que iam para o Inferno”,
recorda num dos episódios. “Ela foi
criada no seio dessa Igreja e conse-
guiu sair. Conseguimos perceber a
parte racional do porquê de ela ter
feito parte desta Igreja já que, da
perspectiva dela, a igreja era sobre
amor, não ódio. E aqui é curioso
perceber que quem se torna fanáti-
Os conflitos
entre Israel e
Palestina são
abordados no
documentário
À esq., antigo
neonazi Frank
Meeink no
bairro onde
acabou por se
identificar com
ideias
extremistas.
À dir., antigo
jihadista Jesse
Morton
“Tomamos as democracias como garantidas.
Tornámo-nos complacentes”
Alex Gibney e Steven
Spielberg (ao
centro) e os
realizadores Sam
Pollard e Geeta
Gandbhir
A jornalista viajou a convite
do Discovery