42 • Público • Segunda-feira, 14 de Outubro de 2019
DESPORTO
Simone Biles,
razões para ser feliz
Quando era treinada por Marta
Karolyi, Simone Biles não estava auto-
rizada a sorrir durante o treino. A
treinadora romena encarava o riso
como um sinal de falta de rigor e
empenho num desporto em que se
chega à perfeição pela repetição. Por
muitas razões — mãe toxicodepen-
dente, início de vida em lares de
adopção, abusos sexuais, irmão acu-
sado de homicídio —, não sorrir seria
o seu estado normal, e houve alturas
em que teve de recorrer a terapia para
conseguir entrar num ginásio. Mas
Simone Biles tem encontrado razões
para ser feliz e manter o sorriso que
o mundo sempre lhe conheceu. Não
apenas o sorriso. Também uma fome
competitiva e uma vontade de aper-
feiçoar a perfeição, o objectivo máxi-
mo em qualquer prova de ginástica.
Aos 22 anos, Simone Biles continua
a fazer história, a ser uma gigante com
1,42m de altura. Ontem, fechou os
Mundiais de Estugarda com mais
duas medalhas de ouro, nas Ænais da
trave e do solo, levando, de caminho,
uma série de recordes. Só nestes
Mundiais, Biles conquistou cinco títu-
los em seis possíveis — foi quinta nas
paralelas assimétricas — na competi-
ção feminina, um recorde por si só
que lhe permitiu chegar a outro ainda
mais abrangente, o de mais medalhas
conquistadas em Mundiais entre os
dois géneros. O título na trave olímpi-
ca valeu-lhe a 24.ª medalha e a ultra-
passagem a Vitaly Scherbo, que con-
quistara 23 a competir pela União
Soviética, Comunidade de Estados
Independentes e Bielorrússia. Menos
de uma hora depois, voltou ao tapete
para a 25.ª medalha, com um triunfo
na Ænal do solo, elevando o seu núme-
ro de títulos para 19.
Mas não é só pelos títulos que Simo-
ne Biles entra para a história da ginás-
tica. Conquista-os deÆnindo novos
limites que só ela própria poderá
ultrapassar, inventando movimentos
perigosos para a integridade física de
todas as outras. Numa era em que o
10 já não é o símbolo da perfeição da
ginástica, ganha quem tem mais pon-
tos na combinação do grau de diÆcul-
A norte-americana fechou os Mundiais de Estugarda com mais duas medalhas de ouro, tornando-se
a ginasta, entre homens e mulheres, com mais posições de pódio na história dos campeonatos: 25
me. Estava muito cansada. Mas estes
foram mesmo os meus melhores Mun-
diais de sempre”, disse Biles depois
de terminar mais uma colheita de
ouro. Entre as cinco, foi a da trave a
mais saborosa e a que mais festejou.
Simone Biles é uma combinação
perfeita de potência muscular e gra-
ciosidade, o que lhe permite ir
subindo o nível à medida que vai
avançando na idade — 22 anos é iní-
cio de carreira em muitos despor-
tos, na ginástica é quase terceira
idade. Não há qualquer sinal de fadi-
ga competitiva em Biles, que com-
pete em todas as especialidades da
ginástica artística e que, por isso,
tem sempre um programa carrega-
do. Mas, já antes destes Mundiais, a
norte-americana disse que os de
Estugarda talvez fossem os últimos
e que fecharia a carreira nos Jogos
DANIEL KOPATSCH/EPA
A medalha de ouro obtida na trave foi a que Simone Biles mais festejou
de Tóquio, porque o corpo, agredi-
do por uma vida dedicada à compe-
tição, estava a pedir.
Depois da épica exibição nos Jogos
Olímpicos do Rio de Janeiro, Simone
Biles cumpriu um ano sabático,
período em que se intensiÆcaram
denúncias sobre abusos sexuais a
ginastas por parte de Larry Nassar,
médico da equipa dos EUA. Quando
voltou desse ano de paragem, cus-
tou-lhe voltar a pisar um tapete e teve
de recorrer a terapia para o fazer,
mas ultrapassou a dor e voltou aos
títulos em 2018, em 2019 e, provavel-
mente, em 2020. Depois de Tóquio,
o primeiro lugar volta a Æcar vago.
Mas o lugar de melhor de sempre já
tem dona para muitas décadas. Cha-
ma-se Simone Biles.
Ginástica
Marco Vaza
[email protected]
dade do exercício que cada ginasta se
propõe a fazer com a perfeição com
que o executa. Simone Biles começa
logo a fazer a diferença antes de colo-
car os pés no tapete porque as rotinas
que apresenta têm, à partida, um
nível de diÆculdade inacessível a qual-
quer outra ginasta. Depois, a execu-
ção é quase sempre perfeita e o resul-
tado é quase sempre o mesmo: vitória
de Simone Biles. É assim desde 2013,
será assim, pelo menos, até 2020.
Para se perceber a diferença entre
a pequena norte-americana e a res-
tante concorrência, a Comissão Téc-
nica da Federação Internacional de
Ginástica decidiu baixar a pontuação
atribuída por nível de diÆculdade à
rotina apresentada por Biles (e que
tem o seu próprio nome) argumen-
tando que esta era uma forma de
desencorajar outras ginastas de ten-
tarem coisas que poderiam pôr em
causa a sua integridade física. Ainda
assim, na Ænal de all-around , Simone
Biles bateu o recorde de diferença
pontual para a segunda classiÆcada,
a chinesa Xijing Tang — 2,1 pontos, a
maior diferença desde que mudou o
sistema de pontuação, em 2006. Na
prova do solo do all-around , Biles
pisou duas vezes fora do praticável,
mas não deixou de ter o resultado
mais alto — a diÆculdade da sua rotina
era a mais alta (6,600) e mais que
compensou o resultado com penali-
zações (8,200).
No derradeiro dia destes Mundiais,
Simone foi a última a competir na Ænal
do solo, que era a última Ænal indivi-
dual feminina. Fê-lo com os dois movi-
mentos que têm o seu nome, termi-
nou a rotina e só teve de esperar pela
pontuação. “Já nem conseguia mexer-