pisavam na ponta de minha sombra. A vida, aberta em céu azul, sorria para
mim.
Oferecia-me a mocidade as tâmaras mais doces da alegria.^4 Certa manhã
recebi de meu pai a incumbência de levar pequena cesta de uvas à casa de
uma egípcia (para mim desconhecida) não muçulmana,^5 chamada
Nurenahar. Morava para além da praça, na rua Kanopa.
— Escuta, meu filho — recomendou-me gravemente meu bondoso pai.
— Escuta. Esta bela cesta deve ser entregue em mãos da própria destinatária.
Tu mesmo — insistiu — deverás fazer a entrega. A infiel^6 deverá receber de
ti a encomenda. Escuta bem: receber de ti!
Meu pai falava em tom sério, martelando as palavras, como se a cesta de
uvas, destinada a um infiel, fosse um talismã encontrado entre as ruínas dos
tempos dos faraós. Sem dar muita atenção ao caso, tomei da cesta e parti
para o prédio indicado na rua Kanopa,^7 depois do canal. Era uma casa ampla,
toda de pedra escura, com janelas gradeadas e pequeno muxarabiê^8
implantado sobre a porta principal. Quando lá cheguei (depois de observar a
escada e correr os olhos pelo pátio interno), assaltou-me a impressão de que
a casa não tinha moradores. Pareceu-me toda fechada. Fechada, escura e
silenciosa. Bati várias vezes. Abriu-se, afinal, pequena janela lateral (a única
janela sem grades) e vi surgir o rosto de um ancião, magríssimo,
inteiramente calvo, de longas barbas brancas. Seus olhos eram pequeninos;
sua pele, de impressionante palidez. Figura estranha, encarquilhada. Parecia
mais perigoso feiticeiro do deserto do que porteiro de uma casa alexandrina.
— Que pretendes aqui, ó jovem? — inquiriu o ancião. Sentia-se em suas
palavras acentuado sotaque estrangeiro.
— Trago uvas para a sra. Nurenahar — respondi impaciente. — Remete-
as meu pai, Salim Maaruf, o honrado fruteiro do porto. Venho de Bruquio.
— Inab ... Inab ... (Uvas... Uvas...) — remoneou muito sério o
macróbio, levando a mão, em concha, sobre a orelha direita. Parecia muito
surdo. E interpelou-me num tom que não admitia réplica:
— Teu nome, qual é?
— Ora, o meu nome! Para que o meu nome? — Já ia muito longe a
petulância daquele porteiro surdo, das barbas brancas. Quem era eu?