Ahnaf^37 (seu poeta predileto), contava histórias de amor no deserto e
indagava de minha vida de siamesa entre os jovens de Bangcoc. Era
infatigável na sua verbosidade. Em certos momentos, especialmente,
cumulava-me de atenções tão cativantes que ao espírito de uma esposa
sofrivelmente desconfiada poderiam parecer exageradas. Vê só: ao terminar a
refeição, oferecia-me, em taças de porcelana, doces de romã e ia, ele próprio,
em seu andar claudicante, buscar a bacia de cobre, com água límpida, fresca
e perfumada, onde eu mergulhava as pontas dos dedos;^38 e, esquecido da
velha etiqueta, fazia questão absoluta de enxugar as minhas mãos com a
toalha mais fina da arca de minha tia. E depois, com certo requinte, beijava-
me três vezes na palma da mão direita, como se eu fosse uma criança
travessa, e balbuciava leitak saidé.^39 E eu, afinal, não era árabe; não lia o
Alcorão; era uma siamesa infiel!^40
Havia, na velha casa de tia Rafif, longo corredor escuro que ia da porta
principal até o harém. Para esse corredor abriam-se as duas salas (uma delas
destinada exclusivamente aos homens) e os três aposentos, arejados por
pequenas chebbak ,^41 mas ricamente mobiliados. Uma tarde, ao deixar o meu
quarto (o mais amplo da casa), dei de cara, no meio do corredor, com o justo
cádi. Nesse dia, por acaso, tia Rafif não se achava em casa. Havia ido, muito
cedo, ao suque^42 dos perfumistas e levara, em sua companhia, as duas
escravas sudanesas que nos serviam. O justo cádi, arrastando o pé, caminhou
direto ao meu encontro, segurou-me de leve pelo braço, fitou-me de
maneira estranha (os seus olhos pareciam enviesados) e sussurrou,
arrebatado, trêmulo, inclinando seu rosto sobre o meu: “És linda, ó
Nurenahar! Pela sombra da Caaba!^43 És linda, ó siamesa infiel!” E, depois de
proferir tais palavras (sem que eu pudesse evitar), apertou-me em seus
braços e beijou-me, na boca e nos olhos, repetidas vezes. E beijos desse
gênero, de um enamorado, de um homem apaixonado, eram os primeiros
que eu recebia em toda a minha vida!
E não foi sem custo que me livrei, naquela tarde, no meio do corredor
escuro, das expansões amorosas, e certamente censuráveis, do justo cádi
apaixonado. Os seus arrebatamentos ultrapassaram os limites de liberdade
que uma jovem solteira, siamesa e infiel poderia permitir a muçulmano de
meia-idade, marido fiel de uma esposa dedicada e simples. Quando a
bondosa e despreocupada tia Rafif voltou do suque dos perfumistas, contei-