A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

Rosália e as restantes criadas atravessam os corredores da Casa de Saúde
sempre carregadas, «ora cestos de roupa lavada, ora roupa suja que trazíamos
para lavar». Maria, preocupada em redimir a sua ausência forçada da residência
oficial, manda entregar todos os dias no palacete a comida que sobra das
refeições preparadas na Casa de Saúde da Cruz Vermelha. «As outras comiam,
mas eu não. Não gostava da comida do hospital», justifica Rosália, que
aproveita então o que a capoeira de São Bento dá. «O meu forte era o pão com
manteiga e os ovos estrelados. Foram tantos os ovos comi nessa altura!»
Dúzias deles, da mesma produção caseira, rumam também para o «senhor
doutor», a pedido da governanta.
Maria dá nas vistas. Mais do que a conta.
Vasconcelos Marques espanta-se com a presença constante daquela senhora
que não conhece de parte alguma: «Mas quem é, afinal? É a mulher, a amante,
a empregada do Presidente do Conselho?», questiona, aproveitando a presença
do ministro Correia de Oliveira. «É a empregada», responde o governante.
Insatisfeito, o neurocirurgião aproveita uma das raras ocasiões em que
Salazar parece em franca recuperação, com disposição a condizer, e procura
atalhar a curiosidade: «A senhora dona Maria é uma mulher dedicadíssima e
inteligentíssima», insinua. «É dedicadíssima, mas ignorantíssima!», dispara o
doente, congelando os avanços.
Seis pisos abaixo, no átrio, os jornalistas espreitam cada possibilidade de
chegarem à fala com ela, rondam-na como abelhas em volta do mel.
A governanta sai, por essa altura, de um recato de décadas, e torna-se
delicodoce com a imprensa, revelando o pequeno-almoço do doente, à base de
sumos, chá e torradas que ela preparara. Também o caldo verde, ao almoço, é
cozinhado por Maria. Besuntada pelos jornalistas, embalada, chega a trocar as
datas do acidente, confundindo os próprios repórteres. Momentos raros, estes,
ou não tivesse ela mantido as portas trancadas à exposição pública, se
excetuarmos um fugaz destaque na revista O Século Ilustrado, em 1938, numa
reportagem sobre a intimidade de Salazar, e as duas frequentes aparições
anuais, em silêncio, quando o ditador recebia em São Bento os pescadores dos
bacalhoeiros a as alunas do Instituto de Odivelas.
No sexto piso, onde Salazar está internado, «só uma pessoa tem estado
constantemente à sua cabeceira: Dona Maria de Jesus Caetano Freire, a sua
governanta», escreve o diário londrino The Times, esmiuçando: «Raramente sai
do seu lado e, só ocasionalmente, faz uma sesta num quarto do hospital
especialmente preparado para o efeito. Ela veio para Lisboa para tratar do

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