A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

transformara-se ao mesmo tempo num vespeiro político, local onde os enredos
sobre o futuro do regime se tecem a todas as horas.
A televisão transmite diariamente o «filme das visitas», monocórdico,
cinzento e baço. Costa Brochado fornece outro colorido deste tempo nas suas
memórias: assistiu-se, segundo ele, «à desvergonha sem perdão, de ver, todos
os dias, na televisão, antigos, presentes e futuros candidatos a qualquer coisa,
de copo na mão, exibindo o seu amor tardio ao Chefe que nunca reconheceram
e muitas vezes traíram.» Eram «como abutres à volta da carne morta,
mostrando, na televisão, uma dedicação que nunca existiu e a suprema
hipocrisia da mágoa no lugar do júbilo».
Perante o cenário, o antigo jornalista nem às missas mandadas celebrar «nas
igrejas mundanas de Lisboa» apareceu, para não ter de se encontrar «com os
piores mortificadores da alma de Salazar».
Também Franco Nogueira se espantara com o frenesim das visitas
ministeriais «a horas mortas, em plena madrugada» por parte de personagens
que pretendem «dramatizar o seu interesse» e ver o seu nome destacado nos
periódicos.
Há mesmo quem contrate fotógrafos para o efeito ou avise a televisão da sua
presença, com a devida antecedência. Em paralelo, uns esgadanham-se por
aparecer na fotografia com o Presidente da República, enquanto outros, já a
ensaiar a fuga para a sobrevivência, vestem o estatuto de paladinos da mudança
e ocupam os dias em intrigas, conluios e estratégias para destronar rivais ou
arregimentar falanges de apoio.
Não faltam, a propósito, «espiões» e «emissários» bem colocados na casa de
saúde, atentos a idênticas manobras de eventuais adversários na guerra por um
lugar ao sol depois que se desvaneça a sombra de Salazar.
Não será o caso de Domingos Vitória Pires, à época secretário de Estado da
Agricultura e responsável pela milagrosa multiplicação de sementes nos
terrenos da Quinta das Ladeiras, em Santa Comba. Salazar queixara-se, certo
dia, do facto dos beirões como ele não saberem cultivar o trigo ao ponto de
obter as boas produções que eram comuns no Alentejo. Com o consentimento
do «chefe», o engenheiro agrónomo do Governo propôs-se então fazer nas
leiras de Salazar uma experiência idêntica às que já então se aplicavam nas
terras de outros agricultores, através da Estação de Melhoramento de Plantas.
Com as instruções dadas pessoalmente ao caseiro do ditador, as produções
cresceram, atingindo, mais tarde, dezoito sementes.
Ao visitar Salazar na sua cama de hospital, Domingos Pires levara notícias

Free download pdf