A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

da sua passagem recente por Santa Comba para ver o trigo. «E vocês, este ano,
garantem-me outra vez dezoito sementes?», interroga-o, desafiante, o doente
em convalescença.


Ao fim de sete dias, Salazar reage bem aos tratamentos, os boletins clínicos
acentuam as melhoras.
Vasconcelos Marques dera um murro na mesa, perante governantes e o Chefe
do Estado, declarando-se indisponível para permitir retoques ou censuras à
informação médica sobre o doente vazada para o público: «Diremos a verdade
e só a verdade. Vossas Excelências não nos peçam para dizer coisas que não
sejam verdade porque nos recusaremos a assinar. Temos as nossas
responsabilidades profissionais e há o dever de informar o País da verdade»,
insistira.
De uma situação «quase desesperada» em que todos deveriam «estar
preparados para tudo», conforme alertara o neurocirurgião, o chefe do Governo
começa a contrariar as sentenças.
Sempre por perto, a assistente Cristina da Câmara ouve de Salazar «uma
conversa agradável e muito simpática» e reconhece nele um homem «delicado»
que cumpre «todas as ordens médicas» que lhe são dadas, sempre «muito
afável e dócil».
Em poucos dias, o doente caminha no quarto sem dificuldade, alimenta-se
regularmente e come quase tudo da sua preferência. Conversa com os médicos,
faz sonos repousantes, mostra boa disposição, ensaia a assinatura e tem desejos
de regressar à vida normal. O povo faz fila à porta da Casa de Saúde, em cuja
capela senhoras mandam rezar missa pelas melhoras do seu «santo».
Orações pela sua cura atravessam as páginas dos jornais, chegadas de
remotas capelas do interior. Peregrinações, preces coletivas, organiza-se o País
crente e devoto, que confia ao divino o que os homens já não podem. As irmãs
visitam Salazar e consta até que, em escapadelas ao quarto, Maria lhe permite
molhar os lábios em pinguinhas de vinho do Porto e copos de tinto para
arrebitar.
O estendal mediático montado à porta da Casa de Saúde da Cruz Vermelha,
cujas tentações a censura corta e costura com requintes de filigrana, resulta,
ainda assim, em histórias tricotadas entre o fait-divers e uma tragicomédia.
Descrevem-se, ao minuto, as entradas e saídas dos visitantes ilustres, faz-se
marcação cerrada às assinaturas no livro «de cumprimentos».

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