A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

Surge depois a governanta, em tom de confidência. Repara nela com mais
pormenor: «os olhos empapuçados, a erosão das insónias», rosto torturado de
mulher, capaz de circular «com a sobriedade e a leveza de uma sombra», num
teatro de cujo enredo ela poderia bem ser a chave. «Saiu agora o doutor
Merrit», diz a governanta ao «rapazinho», baixinho. «Nada a fazer», resigna-se
Maria de Jesus, referindo-se ao comentário do neurologista norte-americano,
chamado de urgência para dar a sua opinião. Realçara, apesar da delicadeza da
situação, o «espírito indomável» de Salazar, tendo em conta a idade.
Telegramas do mundo inteiro são publicados na íntegra, chegam ramos de
flores que dariam para cobrir a unidade hospitalar inteira e no átrio são
entregues embrulhos, cestos, sacos de doces regionais e vinhos.
Entre a entrada e o exterior, declamam-se poemas, canta-se, reza-se. Equipas
de futebol de passagem por Lisboa vão, com todo o plantel, marcar presença
simbólica.
Velhinhos chegam a pé, arrastando-se, cumprindo promessas.
Velhinhas dedilham terços, contando histórias de milagres.
Há mesmo quem jure ter visto Salazar acenar à janela da clínica, em
aparições – ou assombrações? – fugazes.
Numa dessas noites, pelas 21h30, estaciona à porta da Cruz Vermelha um
automóvel preto. É Rosália quem sai ao encontro do veículo para receber das
mãos de Amália Rodrigues um enorme cesto de botões de rosas e um
bilhetinho com umas quadras para «o senhor doutor».
Uma hora depois, o Diário de Notícias capta o momento em que Rosália e
outras jovens empregadas se preparam para sair daquela unidade hospitalar.
Regressadas do quarto do doente, têm indicações expressas para entregar as
flores oferecidas pela fadista numa igreja de Lisboa. A censura autoriza apenas
a divulgação do gesto, mas proíbe a publicação dos versos: «Ponha-se-me bom
depressa / Meu querido presidente / Depressa... Não sei do regulamento/ E se
isto é má criação/ Perdoe o procedimento/ Aceite a intenção... que essa cabeça
não merece estar doente», escrevera Amália, sem imaginar o folhetim que estas
simples palavras arrastariam.
A fadista, nascida em família onde se admirava Salazar, apaixonara-se por
ele na inocência dos seus 13 anos. «Era um homem bonito, era o homem que
mandava em tudo», justificara. Com a fama e a proximidade geográfica – a
residência oficial era quase vizinha da moradia de Amália – vieram os boatos:
«Chegaram a dizer que havia umas escadas entre a minha casa e São Bento...
E que havia um elevador especial para mim. E que aqui no quintal tinha um

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