A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

túnel que ia direto para lá... porque ele não fazia nada sem mim!», contará, no
final da vida.
Salazar habituara-se a tratar a fadista por «criaturinha» desde que António
Ferro os apresentara. Tinha pelos fados um profundo desprezo: considerava-os
deprimentes, culpados do amolecimento do caráter português e capazes de
incitar à inação. Amália era, pois, a «criaturinha» que personificava tudo isso.


A 14 de setembro, o chefe do Governo entra «em franca convalescença» e os
médicos garantem que «regressará brevemente à sua residência em Lisboa».
Eduardo Coelho deixa que o entusiasmo o precipite: «Restituímos o senhor
Presidente do Conselho à Nação completamente curado.»
Dois dias volvidos, Salazar é traído por um acidente vascular cerebral
violento. De manhã, quando visitado pelo antigo ministro Leite Pinto,
comentara até, apontando para a janela, como as folhas das árvores se tinham
modificado em tão pouco tempo.
A seguir ao almoço, porém, afligira-se com uma dor violenta, lançando as
mãos à cabeça, e soltando um «Ai meu Jesus!» antes de entrar em coma.
A hora é dramática, a mais dramática de todas, e a equipa de médicos e
enfermeiros não o esconde. Gera-se novo corrupio de figuras de Estado e, pela
primeira vez desde o internamento, aparece Marcello Caetano.
O cardeal Cerejeira também surge para uma visita que aprazara antes dos
últimos desenvolvimentos. Emociona-se com o cenário e os prognósticos. «Ele
sempre foi católico e tem sido sempre muito infeliz. Não, nunca foi feliz, sei-o
bem», desabafa, com o Presidente da República a ouvi-lo. «Nesta hora, se
Vossa Excelência estivesse de acordo, eu quereria administrar a extrema-unção.
Para mim é muito importante poder confortá-lo assim. Comprometo-me a
segredo absoluto, só entre mim e Deus», insiste. Américo Tomás não se opõe.
Guardar-se-á sigilo.
Com o passar das horas, à medida que a preocupação toma conta do Chefe de
Estado, o prognóstico de Salazar fica também mais definido: sobreviverá, é
certo, mas ficará incapacitado mental e fisicamente de forma irremediável. Um
inválido, portanto. Já muito resistira.
Passara entretanto pela Cruz Vermelha, o padre Gregório Verdonk,
missionário holandês naturalizado português com fama de milagreiro, que se
tornara, nos últimos tempos, assistente espiritual do ditador. Voltam as rezas, os
dramatismos, agora em clima de luto antecipado.

Free download pdf