VIII
Shakespeare em São Bento
A 5 de fevereiro de 1969, Rosália Araújo viu entrar em São Bento a sombra
do homem que conhecera anos antes, então ainda seguro dos seus movimentos,
certo de raciocínio e com momentos de vitalidade. Agora, Salazar regressava a
casa, amarrotado pelos anos e pela doença, mortiço no olhar, desconfiado de
tudo e procurando decifrar ténues familiaridades nos rostos e cenários que o
rodeiam.
Oscila entre um torpor profundo e frinchas de lucidez, o homem que nesse
dia abandonara, numa ambulância, a clínica da Cruz Vermelha. Estavam dez
graus à sombra e um sol brilhante num céu azul límpido, quando Eduardo
Coelho ordenou o transporte do doente.
Salazar vai no banco de trás, envolto em mantas.
Segundo o médico, deixara a cama do hospital «com uma disposição
magnífica». Franco Nogueira vê-o, pelo contrário, «muito diminuído
fisicamente», paralisado e incapaz.
Abatidas, as criadas olham o farrapo humano que, de cadeira de rodas,
regressa a casa. «Ele parecia uma pessoa fora deste mundo», recorda Rosália.
À sua espera, Salazar tem ainda o ministro Gonçalves Rapazote e o diretor da
PIDE, Silva Pais. O velho ditador está baralhado, confuso.
Sem sair da cadeira de rodas, percorre o primeiro andar, o mais íntimo, e dá
umas voltas no jardim e no lago, estranhando, num primeiro momento, o local
onde se encontra.
«Que diacho, parece tudo diferente!», desabafa.
Horas depois perguntará pelo «livro encarnado». À partida, parece mais uma
questão sem sentido, sintoma da sua debilidade. Mas Paulo Rodrigues,
secretário particular, percebe onde ele quer chegar: Salazar procurava as suas
agendas diárias, pequenos livrinhos de capa vermelha, nos quais anotava