A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

«ignorava em absoluto que já não era Presidente do Conselho». Admite que
Salazar, «num instante de lucidez», pudesse compreender a situação real, mas,
na verdade, não tinha consciência «da gravidade da doença». Perdera a noção
do tempo, não se apercebera «das diminuições mentais que tinha sofrido».
Os episódios sucedem-se, ajudando a formar a sua convicção: «Calcule o
senhor que as enfermeiras me obrigaram hoje a andar nos jardins, debaixo de
chuva, e com uma pessoa atrás, de chapéu de chuva aberto!», comenta o
ditador, em conversa com Franco Nogueira. «Já viu o que há de ridículo em o
Presidente do Conselho andar a passear com chuva e de sombrinha aberta?»,
interrogara-se, a rir.
Costa Brochado, velho amigo, nunca ficara convencido.
Conversas mantidas entre ambos inclinavam-no para a tese de que Salazar
percebera, «em súbitos clarões de lucidez», que Marcello subira ao poder. «Via
isso num segundo, mas no segundo seguinte já de nada se recordava.» Se assim
não fosse, advertira, «todos os que o conhecemos bem sabem que ele seria
incapaz de continuar vivendo na residência oficial do Presidente do Conselho,
a receber o vencimento de chefe do Governo e a aceitar a pensão vitalícia que o
Governo de Marcello Caetano lhe arbitrou, contra toda a nossa tradição
política», escreverá Costa Brochado, nas suas memórias.
Os médicos, porém, são categóricos: Salazar vive noutra realidade.
A doença afetou-o com tal gravidade que não sabe, nem pode saber, que já
não é chefe do Governo.


É férreo, pois, o controlo das entradas e saídas de São Bento.
Escasseiam os contactos com o morto adiado.
«A dona Maria não deixava que houvesse muitas visitas, nem toda a gente
lhe servia. Só entrava quem estivesse guardado no peito dela. Pessoas que iam
lá de propósito para vê-lo, ficavam à porta. Ela dizia que o senhor doutor
estava a descansar, inventava desculpas. Quando ele percebia, ficava muito
triste», explica a antiga criada, sem contudo esquecer atitudes em sentido
contrário. «Quando o senhor doutor deixou de ter saúde, pessoas que eram
visita habitual e muito dadas deixaram de frequentar a casa. A dona Maria
queixava-se muito disso.»
Nessa altura, a governanta ainda autoriza, por insistência de Rosália, a visita
de uma conterrânea. Padeira em Favaios, dona Adélia pedira para ver o
«senhor doutor» em vida. Leva uma mala de cartão, atada com um baraço,

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