A última criada de Salazar

(Carla ScalaEjcveS) #1

O cardeal Cerejeira aparece com o padre João Rocha e celebra-se missa na
capela privativa, diante de um Salazar sumido na poltrona, de terço junto ao
fato, rodeado de enfermeiras, de Maria, e outras senhoras amigas. «Ainda estou
vivo», repete o ditador durante um passeio pelo jardim.
Ramón Serrano Súñer, cunhado do ditador espanhol Francisco Franco e
antigo governante franquista, visita-o por esta altura. «Estás a ver a situação da
minha vida?», desabafa o doente. «Temos tantas coisas que podemos recordar,
tu e eu...», comenta, melancólico.
Tinham, de facto. Mas nem sempre do mesmo lado da barricada. Serrano
Súñer fora um dos mais empenhados germanófilos espanhóis, extasiado com a
ascensão de Hitler. Em tempos, considerara Salazar o último amigo da
Inglaterra na Península, mas, entre eles, haviam ocorrido histórias suficientes
sobre o papel de Portugal e da Espanha na Segunda Guerra Mundial,
aproximando-os. Sim, tinham muito que lembrar. «Mas é preferível que não
nos recordemos. Sossegue e ponha-se bom», recomendara Súñer a Salazar,
antes de selarem o último encontro com um abraço.
Nas semanas seguintes, o enfermo perde o ânimo para conversar, deixa-se ir
numa corrente de tristeza. Ainda dá alguns passeios, visita amigos, mas não é
apenas de meter dó o seu semblante: é penoso o seu viver. Os dias do enfermo
são já um carrossel de fraldas, transfusões e preocupações. «Era do cadeirão
para cama e da cama para o cadeirão», esclarece Rosália que, por essa altura,
não tem parança.
Uma dessas noites, Maria tenta espicaçá-lo, com perguntas envenenadas: «Ó
senhor doutor, como é que o poder está organizado no período da sua
doença?», interpela-o. «Bem ou mal tudo caminha», responde Salazar, sem
forças nem ânimo. «Correram comigo brutalmente. Nem me falam dos
assuntos políticos, não me dizem nada, não me ouvem», repete, por segundos
consciente da realidade e da fantasia com que o ludibriaram: «Se se
aproveitaram da doença para se afastarem de mim... isso não é bonito, não se
faz.»
Salazar deixara de ser o ator principal da sua própria vida, transformara-se,
isso sim, num figurante incómodo para as estrelas cintilantes do regime.
Incapaz de perceber, de ciência certa, as razões do abandono a que fora
votado, o ditador recorrerá no fim da vida a uma velha amiga, a quem
reconhecia outras capacidades de leitura da realidade: Maria Emília Vieira,
então casada com Norberto Lopes, antigo diretor do Diário de Lisboa e de A
Capital,
jornal onde a esposa assinava, sob pseudónimo, o horóscopo diário.

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